E é por isso, afinal, que aqui estamos. Para ver de perto um mundo que deixou de ser o nosso há muito tempo atrás e onde hoje somos intrusos, desfasados das leis que outrora também nos regiam, dessas coisas iniciais que então partilhávamos com os bichos: beber antes da noite e ao nascer do dia, caçar durante o dia, proteger as crias, defender o território que é a nossa cas, e afastarmo-nos para morrer sozinhos, quando a inevitabilidade da velhice nos torna apenas um fardo inútil para os outros. E vimos então a África em aviões pressurizados, sobrevoamos num repente as distâncias que antes percorriamos caminhando durante semanas ou meses, dormimos em bungalows confortáveis, assentes sobre estacas para nos porem fora do alcance dos perigos, comemos um pequeno-almoço de luxo que nos espera depois de ir ver se as feras ainda o são verdadeiramente e levamos tudo de volta para casa, arquivado em milhares de fotografias, em cadernos de viagem, em bugigangas feitas de osso de rinoceronte ou, os mais atentos, na memória que não partilhamos, porque não é partilhável, de um pôr-do-sol vermelho de fogo na direcção dos elefantes, de uma manhã afogada num nevoeiro que só os ruídos do mato atravessam, de um frio absurdo, desumano, incompreensível, de uma alegria absurda, incompreensível. Desumana.
Ukuhamba, Miguel Sousa Tavares
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