Quando começa a vir o tempo quente e os sapatos abertos se impõem, começa uma fase de sofrimento para os meus pés, que tendem a ficar cheios de calosidades e, volta e meia, também com bolhas.
Por isso, por estes dias, todas as manhãs, esfrego os pés com creme próprio.
Porque estou a contar isto?
Porque, hoje de manhã, enquanto o fazia, dei por mim a pensar: "É importante preparar os pés para o caminho, mas a preparação tem de ser isso mesmo: preparação".
Tentando explicar-me: Se eu saísse de casa sem ter estes cuidados com os pés, estava a comprometer parte da alegria e da produtividade do meu dia. Portanto, é importante que o faça, ainda que isto implique atrasar-me 5 ou 10 minutos na saída de casa (porque além de deitar o creme, tenho de esperar que se entranhe, para não derrapar). No entanto, é uma preparação. Não deito o creme para a seguir me voltar deitar na cama, mas sim para me fazer ao caminho, para enfrentar melhor um dia. Não fico o dia todo a preparar-me, mas, em vez disso, preparo-me e sigo.
Ao pensar nisto, pensava em duas grandes tentações da nossa Fé:
- Uma é pormo-nos a caminho sem preparação;
- A outra é passarmos tanto tempo a prepararmo-nos, a ensairmo-nos, a dizermos "ainda não estou pronto", "ainda não estou preparado", "não é possível que Deus me chame, porque ainda não estou pronto", que, muitas vezes, fazemos da vida apenas um rascunho, apenas um ensaio.
Depois, fui pelo caminho a pensar se esta percepção de preparação q.b. não estava já na génese da nossa Fé, na tradição a que pertencemos.
Lembrei-me de dois textos: um o anúncio da Páscoa judaica a Moisés ("Comê-la-eis desta maneira: os rins cingidos, as sandálias nos pés, e o cajado na mão. Comê-la-eis à pressa." - Ex 12, 11), o outro o envio dos discípulos por Jesus, dois a dois ("Ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser um cajado: nem pão, nem alforge, nem dinheiro no cinto: que fossem calçados com sandálias e não levassem duas túnicas." - Mc 6, 8-9).
Ensina-nos, Jesus de Nazaré, a arte de estarmos sempre prontos. Sim, a arte de nos prepararmos não como quem há-de prestar provas, mas como quem se sente a cada dia enviado e, por isso, tem de ter sempre os rins cingidos e as sandálias calçadas.
Não nos deixes cair na tentação de não nos prepararmos a cada dia, mas também não nos deixes cair na tentação de nos prepararmos para aquele dia que há-de vir, aquele lá longe, aquele em que nos sentiremos preparados e então...
Faz-nos viver hoje como quem sabe que se prepara e quem se abre confiante ao Espírito que nos prepara para todos os desafios que nos lanças.
Não nos deixes viver às pressas. Ajuda-nos antes a viver como quem saboreia, como quem descobre com atenção para o que servem as sandálias que já trazemos calçadas (mesmo quanto mal apertadas) e o cajado que já seguramos nas mãos.
Por muito que nos doam os pés, não nos deixes nunca desistir do caminho. Parar para respirar, para olhar a paisagem, para consultar os mapas do coração, para apertar um pouco melhor as sandálias, sim. Parar por medo, NUNCA.
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