Podiam dar-nos a manhã que não acaba, um sol branco feito de madrugada, um céu de linho que a morte assombra, o fogo frio num arauto em cinza. Podiam cair os nevões de Janeiro, as frases corridas de uma tarde chuva, o relâmpago que não ficou à espera, e o incêndio no enxame das florestas. Podia pensar com a febre de quem está só, pensar que não é preciso apenas pensar, e pensar sem ter em que pensar, ou pensar que um pensamento não vem só. Podia ver a linha no fim do mar, os barcos que dali nunca saíram, o mastro que os temporais quebraram, e as estrelas que o marinheiro procurou. Mas tenho a vida nas mãos vazias, passo-as por água para limpar a vida, e a vida não me sai da palma da mão, a vida fica sem nunca lá ter estado. E quando me pegas na mão que te dou descobres que não há vazio sem vida, e tiras do vazio a vida que lá está para que a vida saia de dentro do vazio. Como se a vida tivesse algum peso, e a pudesse dar na linha desta mão, ponho a mão na mão que me dás para que as vid...
Há três espécies de homens: os vivos, os mortos e os que andam no mar. (Platão)