“Olho para o mundo e para os outros, para o futuro e para mim, e acho prudente proteger-me e aos que cativo com a necessidade de absoluto. Como julgo impudico esperar pela sensação da morte para procurar Deus, confio o meu coração aos seus próprios riscos. Por isso vou a Fátima, numa confusão de sentimentos unidos pela minha determinação,
Vou a Fátima simplesmente porque sinto necessidade de ir e não quero aprisionar esse sentimento livre em nenhuma infatigável introspecção. Vou a Fátima porque o tempo e a razão me cercam: a esperança quer dar o lugar, parece que por sensatez, à ausência de expectativas relativamente aos outros, e eu quero resistir até o fim e merecer que outros resistam por minha causa. Vou a Fátima porque me inquieta um mundo sem espiritualidade e não quero deixar apenas às gerações futuras os rios e os mares limpos e as florestas e o lince da Malcata intactos, mas também o essencial do Homem, a alma, a sua secreta grandeza, aquilo que o distingue diante do mistério da vida e aquilo que nenhum electrodoméstico, ou automóvel, ou taxa de juro, ou cartão jovem consegue iludir.
Vou a Fátima porque mesmo que Deus não exista é verdade o que se diz em seu nome, e posso regressar sem Deus, mas regresso sempre mais próximo dos outros homens. Vou a Fátima porque quem vive da memoria da fé tem uma ilusão: encontrar numa noite fria, numa multidão acreditando, no silêncio profundo dos cânticos e numa solidão corajosa, o que não encontrou nos milhares de páginas meditadas sobre a nossa natureza e o nosso destino. Vou a Fátima porque leio nos olhos do mundo e nos olhos do poder a mais perigosa ausência de fé: a falta de fé nos homens. Fé na sua generosidade e não só na sua gratidão; fé na sua capacidade de se transcender e não só na sua índole de competir; fé na sua liberdade interior e não só na sua liberdade de escolha; fé na sua ansiedade de ser e não só na sua vontade de ter; fé no seu sonho de se entregar e não só no seu talento para se organizar e se facilitar. (...)
Vou a Fátima simplesmente. A fé faz-me falta, Deus faz-me falta. Escrevo-o humildemente.”
(A. PINTO LEITE, Qual é o mal?, S. João do Estoril 2002, p. 38-39).
Cinco anos depois, quando já reencontrara a fé cristã, graças ao “mistério de Fátima” e ao testemunho dos pastorinhos, em novo artigo para o mesmo jornal, publicado a 4 de Maio de 1996, o autor escreve:
“Na semana que aí vem, irei a Fátima, a pé. Pisar o silêncio que não tenho na vida de todos os dias, para conseguir falar com Deus e não apenas comigo próprio, como nos acontece quase sempre. Parar o tempo, para ter tempo, ser ninguém para me sentir alguém, caminhar misteriosamente para perceber o sentido deste absurdo que é existir. Juntar a liberdade e a solidão e submeter-lhes a minha imperfeição. Confiar na humildade e na esperança e pôr-me à disposição da aventura que quiserem. E rezar, essa palavra que as décadas baniram, que eu bani durante tantos anos. Rezar, simplesmente rezar.”
(A. PINTO LEITE, Qual é o mal?, S. João do Estoril 2002, p. 52).
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