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"Que bom voltar a sentir-me comunista."

Perguntei por ti e disseram-me que não aparecias por ali há meses.

Fiquei no mínimo intrigado, até por aquela esplanada ser um dos teus "escritórios" favoritos.

Telefonei-te e disse que estava por ali, à tua espera.

Bonacheirão como de costume, disseste que já estavas a caminho. Pelo meio ainda explicaste que a renda do escritório era demasiado alta e resolveste alugar um mais pequenote e com uma preço mais acessível.

Apareceste dez minutos depois, com o teu estilo inconfundível de "parte pratos". Começaste logo por pedir um cigarro a um conhecido, confessando que já não compravas tabaco há mais de um mês, "vendendo" à malta a quem cravavas um "paivante" a treta de que andavas a tentar deixar de fumar.

Sempre a sorrir, disseste que estavas acampado mesmo em cima da crise, uma "puta" alemã ou francesa, que te obrigou a mudar de vida. Um pouco mais a sério lá explicaste que o teu ordenado curto de actor fora reduzido para metade, assim como o de todos os elementos da companhia. E com o "escritor" a mandar na cultura as coisas só têm tendência a piorar...

O que antes era impossível deixou de ser, até confessaste estar preparado para fazer o papel de padre ou sacristão nos "morangos com açúcar".

Eu sei que somos bons a tirar partido das coisas más, por isso nem estranhei que dissesses que uma das coisas boas destes tempos foi teres voltado a viver em "comunidade". Beber café e almoçar e jantar no teatro passou a ser natural, a malta até improvisou uma copa e uma cozinha, onde cada um pode exibir os dotes culinários. E bebedeiras, agora só em casa ou nas dos amigos.

Gostei muito da tua expressão, carregada de ironia: «que bom voltar a sentir-me comunista.»

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