Um café para adormecer, por favor!
São dez e meia. Mais coisa menos coisa. As pessoas entram no café do costume. Sentam-se, pousam malas, telemóveis, maços de cigarros como pequenas sementes de conversas que, durante um tempo, não terão fim. Cumprimentam-se, reviram os olhos à rotina que finalmente terminou e brindam ao resto de noite que ainda têm pela frente. Ouvem-se restos de conversas. Pousam nas mesas alheias como sobras de cinza de cigarro. As gargalhadas são discretas e estão sentadas à mesa. Como nós. Entre os muitos que chegam e que partem, surge uma presença diferente. Que sobressai. Não sobressai pelas cores que veste, pelas marcas que usa, pelo tablet último modelo debaixo do braço, pelo tamanho da carteira ou pelo que tem dentro. Sobressai pela pobreza. Sobressai pelos bolsos das calças puídas. Demasiado grandes para o nada que têm dentro. Nas mãos um saco de plástico branco com os pertences de uma vida. Uma colher. Três chávenas de plástico. Cigarros. Duas moedas de um euro. A cara era um mapa de cicatrizes de feridas de outros tempos, já sem cor. Já sem memória do que um dia tinham sido. Barba. Pálida. Porque branco é outra coisa. As mãos estremeciam em gestos repetidos e premeditados como se procurassem outras. Sim. As que desapareceram e deixaram um trilho de abandono e de treva. Os dedos procuravam o conforto da pele de alguém num cigarro em segunda mão. Pediu quatro cafés. Três para beber ao balcão e um para levar. Não. Um para levar não chega. Três para levar. Olhou para o café antes de o beber como quem contempla uma obra de arte. Com reverência. Depois bebeu-o como se estivesse a permitir que o abraçassem. O calor do café a ferver atravessou-lhe o peito e fê-lo pensar como seria a vida daquela gente ali sentada que tinha tudo. Que olhava para ele como se lhe lamentassem o rumo ou a falta dele. Coitado. Pensavam. Mas que pena. Que pena estar aqui esta sombra de gente a fazer-me pensar que um dia também poderei ficar assim. Sozinho. A beber cafés para chamar o sono. Quem mora no avesso do mundo bebe cafés para adormecer. Como quem ouve uma história de embalar. Isso de beber café para acordar é mania de gente que tem tudo. Quem não tem nada inventa novos sentidos para tudo. Até para o café.
Coitados. Pensava. Mas que pena. Estarem aqui estas sombras de gente a fazer-me pensar que um dia já fui assim. Um dia já julguei os outros. Que pena. Ter julgado os outros sempre mais do que queria que me julgassem a mim.
Marta Arrais
http://www.imissio.net/v2/cronicas/um-cafe-para-adormecer-por-favor:2912
Comentários
Enviar um comentário