Deixem passar. Tesoura. Vejam a tensão arterial. Oxigénio. Podem dar-me gaze? Consegue mexer a mão? Tirem uma radiografia. Qual é a tensão agora? Tesoura. 90/70. Sutura. Pinça. A tensão está a descer. O pulso está fraco. Quanto sangue temos? Afastador. Esta é a subclávia. Duas de demorol. Quais são as hipóteses? Não mais de 50%. De onde partiu a eternidade, bebo água, corto fruta, faço um corte e deixo-o dizer partes soltas do corpo sob o fio da torneira, divido-o em vários, linhas gregas e pancada de sonhos, a luz estoirada, lâmpadas em cacos aguardando os teus pés. No corredor os quadros põem-se a olhar além de si mesmos, a hera mete-se entre os móveis, folhas de água escorrem, pingam, um perfume encarquilhado acena de outras épocas, um piano de joelhos, metade dentro, e o rabo a sair pela varanda, faz de canteiro. A flor ignorante da hora afoga a velha sede num copo em cada estante, os livros sem fundo, lidos só por fungos, tornam o ar irisado, boquiaberto. A cozinha é uma memória aparte: a buganvília e o poente ferindo a vidraça, a chuva caindo na poeira desabotoa o passado. Passo ao quarto onde a voz é uma sutura, tenho árvores, ermidas, a tardia valentia dos nossos ecos, um escadote passeando-se, a manhã: uma réplica da lâmpada balançada sobre a mesa. Frases carnívoras, retiro os adjectivos para lhes sentir os ossos, verter o líquido acumulado num órgão. Vou buscar as coisas, arrasto-as, cabelos com vento até à raiz, o som das coisas, as unhas delas, atiro-as para cima da mesa. Por um momento admiro os meses de trabalho que me faltam sobre a magnífica carcaça neste meu estaleiro no fundo do mar. Que mais vamos conseguir das palavras? Páginas, esse país impaciente: não aspiramos todos a uma clareza além das imagens, uma cegueira que desenhe o seu mapa sem trajecto, um pulso aberto às transparências, o céu deitado ao chão, horizonte em estado puro? Eu que vivo fora, viajei pelo frio deste mundo escutando outro mundo nos passos perdidos calçados da história do vento, conto-te outra história, uma sem janelas, debaixo do chão onde eles se ouvem. A porta deitada, sombras incorpóreas: um pouco mais de imaginação e já te tenho onde é preciso. Dar-te cabo da vida, pôr-te num corredor com os anjos e o cheiro a lixívia, a olhar a luz quebrada, vê-la de rastos, consumir-se perante essa cor desabrochando na radiografia. Não sinto o pulso, desfibrilhamos de novo? Agora não. Quanto bicarbonato? 16. Pode dar. Quer mais? Prepare mais. As pupilas estão reactivas? Estão dilatadas. Dê-lhe cálcio também. __________ O que é agora? Sem traçado. Sem traçado.
http://omelhoramigo.blogspot.pt/2016/10/deixem-passar.html
Comentários
Enviar um comentário