Vinham perguntar-me o que era a poesia num tempo
em que já ninguém sabia o que era a poesia. Eu estava
à janela, e lá fora havia, de um lado, o sol e algum
céu azul, do outro lado as nuvens, e tinha começado
a chover. A poesia parecia-me não fazer nada no meio
deste hemisfério dividido entre inverno e primavera. Eu estava
no inverno porque me sentia atraído pelas nuvens escuras que
iam chegando; mas não podia ignorar a promessa de primavera que,
apesar do frio, me chegava do lado em que o céu estava
azul. E comecei a pensar que não valia a pena
falar de poesia quando, eu próprio, estava dividido
entre duas partes do mundo que, na realidade profunda do ser,
correspondiam a dois impulsos que nos levam para o dia
ou para a noite. Lembrei-me, no entanto, de alguns
amigos que gostavam da noite, e que tinham sido devorados
por ela. Uns tinham-no feito por opção própria, e de cada
vez que o dia nascia desciam as persianas do quarto e só
as subiam quando lhes vinham dizer que já era noite. Outros,
porém, corriam para junto do mar, de madrugada, e viam
chegar os barcos que tinham andado à pesca durante
os grandes temporais nocturnos. Os homens saíam com
as redes cheias de peixe, e os rostos gretados pelo sol tinham
uma ânsia de terra firme, como se a sua vida se pudesse fixar
nalgum sítio que não fosse o abismo. Se lhes falasse de poesia,
porém, eles dir-me-iam que aquela fronteira entre o mar
e o cais não era propícia a divagações, e o próprio cesto que
traziam às costas poderia escorregar para dentro de água onde
os chocos vorazes da ria esperavam que o peixe morto lhes caísse
em cima para o devorarem. Eu procurava, na maré baixa, que
a espuma me restituísse as suas conchas brancas e ásperas, e agitava-as
como folhas de papel. "O que aqui está escrito", dizia, "é a mensagem
de uma eternidade líquida." E perguntavam-me se era isso que eu
confundia com o amor, como se o amor se pudesse apanhar
no meio de conchas, pedaços de madeira, pedras marcadas pelos
fósseis de algas e crustáceos. E deixava que o dia passasse,
com a pergunta a cristalizar na minha cabeça, para que eu
a pudesse tirar de dentro de mim quando a noite começasse
a cair, e eu fechasse todas as janelas e persianas da casa
apenas para não saber que a noite existia.
Nuno Júdice
em que já ninguém sabia o que era a poesia. Eu estava
à janela, e lá fora havia, de um lado, o sol e algum
céu azul, do outro lado as nuvens, e tinha começado
a chover. A poesia parecia-me não fazer nada no meio
deste hemisfério dividido entre inverno e primavera. Eu estava
no inverno porque me sentia atraído pelas nuvens escuras que
iam chegando; mas não podia ignorar a promessa de primavera que,
apesar do frio, me chegava do lado em que o céu estava
azul. E comecei a pensar que não valia a pena
falar de poesia quando, eu próprio, estava dividido
entre duas partes do mundo que, na realidade profunda do ser,
correspondiam a dois impulsos que nos levam para o dia
ou para a noite. Lembrei-me, no entanto, de alguns
amigos que gostavam da noite, e que tinham sido devorados
por ela. Uns tinham-no feito por opção própria, e de cada
vez que o dia nascia desciam as persianas do quarto e só
as subiam quando lhes vinham dizer que já era noite. Outros,
porém, corriam para junto do mar, de madrugada, e viam
chegar os barcos que tinham andado à pesca durante
os grandes temporais nocturnos. Os homens saíam com
as redes cheias de peixe, e os rostos gretados pelo sol tinham
uma ânsia de terra firme, como se a sua vida se pudesse fixar
nalgum sítio que não fosse o abismo. Se lhes falasse de poesia,
porém, eles dir-me-iam que aquela fronteira entre o mar
e o cais não era propícia a divagações, e o próprio cesto que
traziam às costas poderia escorregar para dentro de água onde
os chocos vorazes da ria esperavam que o peixe morto lhes caísse
em cima para o devorarem. Eu procurava, na maré baixa, que
a espuma me restituísse as suas conchas brancas e ásperas, e agitava-as
como folhas de papel. "O que aqui está escrito", dizia, "é a mensagem
de uma eternidade líquida." E perguntavam-me se era isso que eu
confundia com o amor, como se o amor se pudesse apanhar
no meio de conchas, pedaços de madeira, pedras marcadas pelos
fósseis de algas e crustáceos. E deixava que o dia passasse,
com a pergunta a cristalizar na minha cabeça, para que eu
a pudesse tirar de dentro de mim quando a noite começasse
a cair, e eu fechasse todas as janelas e persianas da casa
apenas para não saber que a noite existia.
Nuno Júdice
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