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Miguel Esteves Cardoso Público, 11/03/2013 

A tristeza do que pode acontecer torna-se não só parte da nossa vida como indissociável da vida, fazendo companhia à felicidade e ao medo de saber o que poderia ter acontecido. Não é preciso conhecer muitas culturas diferentes da nossa para perceber que a nossa perde tempo - não apenas tempo de mais, como tempo em si e ser como tal, à maneira das ruidosas e persuasivas sugestões de Heidegger - a pensar mais nas possibilidades do que na sorte da actual presença. Somos enfraquecidos por medos que não nos aconteceram e que nunca nos acontecerão - mas imaginamos e tememos.
Sempre me chocou a diferença entre o worry inglês e o preocupar português. A preocupação é uma ocupação anterior; prévia. Dá a ideia de um destino. O worry pode aplicar-se apenas às (outras) ovelhas.
O medo e o amor estão para sempre, inevitavelmente, ligados. A morte de quem se ama - ou de quem ama quem se ama - é inteligente e emocionalmente vista como uma morte do amor em si. 
O amor nunca morre: só pode nascer. Existe para além das vidas de quem ama, como a humanidade. Amar é a certeza que nem todas as possibilidades, por muito más que sejam, derrota.
Existe um momento, diante da pessoa amada, em que se percebe que a sorte, de pouca dura, é tê-la encontrado e estar ao pé dela. E, no mais loucamente afortunado dos sonhos, ser aceite, apaixonado, por ela.
A alegria do amor está no que já aconteceu e continua a acontecer: o futuro é como a morte. Resta a nossa vida.

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