Público
27 de Janeiro de 2017, 6:43
Opinião
Um menino de 8 anos mostra-me o quarto. Está cheio de brinquedos. Por cima da porta, quase escondidos, vejo dezenas de círculos de papel, todos escritos com letras maiúsculas, em vermelho. "O que é isto?" O menino encolhe os ombros, impaciente para irmos jogar futebol: "Isso não é nada..." Sigo caminho mas mais tarde volto lá para ler o que dizem.
Um diz "Por tomar banho sozinho". Outro "Por lavar os dentes sozinho M. e noite". Logo abaixo "Dormir sozinho". Depois "Vestir-se sozinho", "Medalha arrumar os brinquedos sozinho" e "Comer sozinho com faca". A única medalha que não menciona a palavra "sozinho" dá-lhe os parabéns por "pôr a louça na máquina".
Compreendi logo porque é que ele encolheu os ombros. São pouco comemorativas estas falsas medalhas, escritas com caneta de feltro e cheias de apressadas abreviaturas. São de cartolina branca. Não brilham. Não se pode trincar para ver se são de ouro. Não é preciso: são obviamente de cartolina.
É triste isto de crescer. Aprende-se a fazer as coisas sozinho e depois, mais coisa, menos coisa, nunca mais ninguém nos ajuda. Até dá a ideia que os adultos nos ensinam as tarefas só para elas se verem livres da responsabilidade de nos ajudar e ensinar. No fundo ensinam-nos a vivermos sem eles.
Aos oito anos ainda não se é livre mas já se tem muitas obrigações. Mostrarmo-nos afoitos é sempre um erro. Os bons aprendizes depressa ficam sozinhos, com as medalhas dos mestres a amarelecer nas paredes. Até eles também passarem a ser mestres. E para quê?
Miguel Esteves Cardoso
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