Manuel António Pina
DN 2012-02-06
Quando comecei a perder a fé era pouco mais velho do que aspequenas Mareen e Lilleinger cuja fé pura e sem limites, tão desprendida como adas irmãs de Lázaro de Betânia, resgata a mãe à morte em A Palavra,de Dreyer. Talvez por isso, mais do que o tio Johannes crendo-se, na sualoucura mística, a reincarnação de Cristo, a confiança das duas crianças sempreme comoveu.
Perder a fé é uma coisa assustadora, sobretudo quando, aos12 ou 13 anos, se tem a cabeça e o coração cheios de hagiografias e deepisódios como o da voz tonitruante que, na Estrada de Damasco, invectivouSaulo de Tarso e da «luz brilhante» que o cegou.
Eu temia que Deus, furioso com as minhas dúvidas, surgissediante de mim como fantasma ou como trovão exigindo-me contas. E a parte de mimque continuava ainda, hesitantemente, a acreditar pedia-lhe que, no caso deexistir, fosse, se possível, um pouco menos teatral comigo do que com Saulo eme desse só um sinal discreto de existência. Assim, antes de adormecer deixavasobre a mesa-de-cabeceira o Cavaleiro Andante com a capavirada para cima aguardando um sinal que voltasse a dar força à minhatitubeante fé: aparecesse, ao acordar, a revista com a capa virada para baixoe, como sinal, isso bastar-me-ia. Tantos anos depois, ainda me lembro dessacapa: o Forte Zinderneuf da Legião Estrangeira onde Beau Geste, um dosinumeráveis heróis da minha infância, todos os sábados, que era o dia de saídada revista, enfrentava valentemente e generosamente os tuaregues e a maldade dosinistro sargento-mor Lejaune.
O Cavaleiro Andante permaneceu, porém,impassivelmente de capa para cima e a minha fé e temor a Deus (uma das questõesteológicas que então infantilmente me afligiam era porque se havia de temer umDeus «que é amor») acabaram por se esvair, deixando-me talvez mais só mas,acreditava eu, mais livre.
No entanto, os seres humanos precisam aparentemente deacreditar em qualquer coisa que os proteja da insuportável consciência dairrisão da vida e lhes ofereça a ilusão de uma razão ou de um destino. No meucaso, não tardei em arranjar múltiplas divindades com que ocupar o lugar vaziode Deus: o Homem, o que quer que seja isso de «o Homem», a Razão, a Ciência, aNatureza... Frequentei indistintamente e desiludidamente - e, a maior parte dasvezes, ao mesmo tempo - o marxismo (fui algo como trotsquista às segundas,quartas e sextas e algo como maoísta às terças, quintas e sábados), o budismo zen,o taoísmo, até vagamente o xintoísmo, e sei lá mais o quê.
A minha poderia ser apenas mais uma comum história pessoaldo cepticismo (ou, talvez antes, da descrença) se obras como A Palavra nãoacordassem em pessoas mais dadas a perguntas que a respostas melancolias quequestionam profundamente todas as formas, sobretudo as óbvias, deracionalidade.
A sequência final da ressurreição de Inger é das mais belase comoventes da história do cinema e da arte em geral, só comparável à da despedidade Heitor de Andrómaca e do filho Astíanax no Canto VI da Ilíada.Ora a beleza é talvez o rosto jubiloso e convincente da verdade (não a própriaverdade, mas o seu rosto).
Hoje sem fé alguma, religiosa ou ideológica, porque é quevendo filmes como A Palavra, ou lendo, por exemplo, textos como o Livrode Job, experimento sempre uma confusa sensação de perda, como aquelesamputados que continuam a sentir a perna ou o braço que já não têm? Talvez nãoseja bem melancolia mas, antes, a longínqua persistência de algo, uma, que seieu?, espécie de resíduo ou de subproduto, em qualquer sítio onde nem a razãonem a vontade (e muito menos o dúbio bisturi de Condillac) podem alcançar.
NOTA: ManuelAntónio Pina escreve segundo a antiga ortografia.
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