Quelimane, 2 de Agosto de 2011
A vida desperta cedo em Quelimane. Ás cinco da manhã já se entoam os primeiros cânticos, o sol dá descanso à noite. Acordamos, lentamente, tal como tudo o que por aqui se faz. Tudo tem e leva o seu tempo. Os ponteiros do relógio correm de uma forma especial e peculiar aqui por estas terras.
Ao fim de sensivelmente duas semanas, deixamo-nos apoderar por um turbilhão de sentimentos e emoções, pacífico, sem ventanias de egos individuais. A saudade já aperta, o coração fica tendencialmente mais sensível a qualquer cóceguinha de estranheza e de incógnita. Os cheiros trespassam-nos, uma mistura inconfundível de caril, com o próprio bater dos corpos e o lixo, lixo em abundância, que cura males de fome àqueles que entre ratos e disputas de cães, lutam pela própria sobrevivência.
O grupo está feliz, ao fim de todos estes dias em que nos entregamos de alma e coração a todos os projectos que as diferentes casas nos oferecem, sentimo-nos realizados. Algo nos diz que de alguma forma a nossa presença lhes é necessária, que esperam um ano pela retoma do trabalho que tem vindo a ser desenvolvido no decorrer dos últimos anos. É absolutamente inapagável a forma como fomos recebidos por algumas pessoas nas diferentes casas. Como o que se lhes trouxéssemos não fosse rumor de antigamente, e realmente não é, um lufada de ar fresco, o céu numa bandeja de prata. O sorriso da Tia Dora, na Casa Esperança, quando nos viu chegar foi a maior prova de que realmente o nosso lugar, durante este mês, é aqui. A forma como o Bendito recordava, cada um de vós que deram corpo e voz ao manifesto noutras aventuras quem em pouco ou nada diferem das nossas, foi o levantar de um desejo de que também assim acontecesse connosco.
A Casa Appolonnie é sem dúvida a que requer uma ajuda mais urgente. E aquela que mais vezes, nos leva a perguntar que Deus é este que permite o que os nossos olhos vêem. São onze os meninos, que partilham uma vida em comum. Os mesmos comentários na escola quando não têm o que vestir ou que calçar, a mesma fome, quando, por motivos que de certa forma nos ultrapassam, o pão não chega àquela casa. Nem todos têm camas. E dentro do grupo que as tem, também existem aqueles que só cumprimentam o arame, isto porque o colchão é só miragem de uns dos muitos sonhos daqueles meninos. Não são fáceis ali as coisas. Apesar de tudo, a humildade é um posto naquela casa. Meigos, receptivos, poetas de uma vida que apenas lhes oferece prosa.
A Casa Família tem sido uma descoberta, um recomeço constante para nós. Talvez o espaço em que as explicações de certas atitudes nos passam um pouco de relance. O desespero mudo de alguns nos primeiros dias foi notório, não estava a ser fácil chegarmos até eles, entregarmo-nos inteiros sem receio de alguma forma nos estarmos a impor. Agora, livres de uma ou outra ideia pré-concebida, gostamos muito de lá trabalhar. Sentimo-nos acolhidos, cada um deles tem agora um nome e um rosto para nós. Cada um deles, um caso a trabalhar. A pedido do Irmão António, estamos a pintar a sala de música. Um sonho que nos confidenciou ter já há algum tempo. O Ir. António está cá há 25 anos. Veio no tempo da guerra em que perdeu três dos seus companheiros. Agora as guerras que aqui se travam são outras, mas não menos urgentes . Disse-nos que quando a família o visita por vezes chora. Em Moçambique não é tempo de chorar, chorar não resolve, o choro não faz parte integrante do que se pretende, trabalho. Não são necessários grandes conhecimentos científicos ou esmerados artífices artísticos, apenas somos convidados a brincar com as crianças, que lhe falemos do nosso planeta, dos continentes que o decoram, das cores que berrantemente aqui, em Moçambique nos falam, que eles próprios não conhecem, seja por desprendimento, seja apenas porque a atenção para tal ainda não lhes foi despertada.
Na Casa Esperança, as condições são notoriamente outras. Ainda bem que assim o é, não sejamos assassinos de boas causas, criticando as más condições de uns e colocando em prantos de desbarato a organização de outros. É numa desta últimas palavrinhas que cremos residir o grande problema de Moçambique, na organização, ou melhor, na falta dela. Até a própria desordem precisa de ordem para que não se torne leviandade. Por vezes, é nos difícil distinguir as margens que separam estas águas. E aqui, sentimos que é a própria religião que lhes impõe um certo peso e medida de regras, independentemente do Deus a quem se entregam, num despojo total do seu próprio ser. O megafone da mesquita chama-os… todos sozinhos, mas lado a lado, todos afirmando-se em igualdade e humildade, iguais no reconhecimento e na necessidade de uma transcendência a que cada um dá a forma que consegue e sabe dar.
Todos os Domingos temos Eucaristia às 8:30h, que o relógio e os falares acusam não bater com as oito e meia. Nada aqui se faz pela metade, mas com tempo, diria. Sentimos um sopro de renovação, os cânticos tipicamente africanos, eloquentes, envolventes, ritmicamente sedutores. Há um sopro de renovação, um sobressalto, um novo alento a acolher na proposta desafiante do caminho a que nos propomos percorrer durante a missão.
Um dos maiores desafios aqui em Quelimane é sem sombra de dúvida atravessar a rua, tarefa quase tão arriscada como a fome de vastidão, de grandeza, de vitória, de sucesso inacabável. É bom quando corre bem.
Já tivemos oportunidade de visitar a praia da Zalala, algo que nos permitiu estarmos juntos, conversarmos, partilharmos brincadeiras e alguns passeios, desfrutando da paisagem e da tranquilidade que o mar, que por mais castanho que fosse, nos transmitia. Tivemos um bom dia, em boa companhia.
Da oração de ontem saiu qualquer coisa como isto:
O que somos resulta, em grande parte, do que escolhemos ser.
O que os outros são resulta, em grande parte, do que escolhemos fazer.
Tivemos todos a sorte de estarmos aqui, cheios da certeza que podemos contar com as nossas mãos: mãos que escolheram entregar-se, mãos que escolheram servir, mãos que escolheram ficar cheias de tudo. Mãos que durante estes dias já cozinharam, já escreveram, já desenharam, já tocaram… já afagaram.
Por isso louvamos o Pai. Porque de entre todas as mãos que poderiam estar aqui, Deus proporcionou que fossem as nossas mãos a servir. E isso deixa marcas. A todos nós.
Todos nos sentimos intimamente marcados pelo que já vivemos aqui em Moçambique. Nada em nós se fica entre o meio e a metade. . O nosso dia-a-dia não passa apenas por meios caminhos, meios desejos, meia saudade. Vivemo-lo intensamente, sem receio do ridículo, sabendo-nos reconhecer nos olhos daqueles que nos rodeiam, interpretando até o seu próprio silêncio, aceitando-os charco e luar de charco à mistura, a corda do arco que atira setas acima e abaixo da sua altura, tal e qual como viemos para dizer que somos, aqui, diante do Pai.
Estamos felizes. Temos tanto para fazer. E embora sintamos que já cá estamos há mais do que aquilo que nos é possível contar no calendário, começamos a apercebermo-nos que o tempo nos começa a escorregar por entre os dedos. Não há tempo para ilusões, nem tão pouco para projectar actos de heroísmo que ponham o mundo às cambalhotas, invertendo o jogo de muitos. É preciso ter cuidado quando se fala em expectativas aqui em Moçambique. Em intenções. Se forem daquelas que apenas nos aliviam a consciência, sabemos que não nos servem de nada. Rigorosamente nada.
Enquanto não voltamos, continuaremos a usar a terra do chão para ensinar os meninos, continuaremos a percorrer todos os dias os caminhos ínvios e “empoçados” que Deus desenhou. Afinal, afinal de contas, estamos em África.
Temos muitas saudades vossas.
Muitos beijinhos,
Dos vossos Moçambicanos
(Patrícia)
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