Avançar para o conteúdo principal
João Miguel Tavares Público 31/12/2013 - 00:11


Eu já tinha decidido encerrar o ano com um texto sobre os enviesamentos da nostalgia e os nossos problemas com a memória, e o Público, para me facilitar a vida, fez o favor de pôr de pé um dossiê especial comparando o ano de 2013 com o de 1993 e o de 1973.

Para uma das imagens de primeira página, a direcção escolheu até uma fotografia de 1988 de Alfredo Cunha, incluída no seu livro A Cortina dos Dias – precisamente uma das obras que mais tive presentes durante 2013, e que ilustra na perfeição aquilo que quero dizer.

O livro de Alfredo Cunha impressionou-me muito pela sua colecção de extraordinárias fotos de uma pobreza avassaladora, começando no Portugal dos anos 70 e indo até finais dos anos 80, e nalguns casos até já bem dentro da década de 90. São imagens de bairros de lata pútridos, hospitais sem condições, pessoas a respigar em lixeiras a céu aberto, crianças nuas a tomarem banho em fontanários. Sempre que alguém vem com a conversa do "no meu tempo é que era bom" ou de como a crise está a fazer Portugal retroceder meio século, dava jeito ter um exemplar à mão para esfregar na cara de quem diz tais barbaridades. Não, não estamos a retroceder meio século. Não, não estávamos melhor há 20, 30, 40 ou 50 anos.
A maldita nostalgia que em Portugal encontrou um microclima para se desenvolver esplendorosamente não é uma nostalgia daquilo que o país já foi mas, quase sempre, uma nostalgia daquilo que nós já fomos. E isso provoca desvios inadmissíveis no discurso público: nós não temos realmente saudades do que Portugal era antigamente – temos é muitas saudades dos tempos da nossa juventude. Nesta quadra natalícia, Vasco Pulido Valente assinou dois textos neste jornal, um intitulado "A morte do peru", onde declarava que "excepto nas lojas, e mesmo nessas melancolicamente, o Natal já não existe", já que as grandes famílias acabaram e "as criadas desapareceram"; e outro intitulado "Vender Portugal", onde afirmava que "a velha Lisboa já não existe e a nova Lisboa não passa de uma mediocridade sem ordem ou alegria", lamentando de caminho "a falência das pequenas tascas da Baixa e do Bairro Alto".
Eis um exemplo perfeito daquilo a que me refiro. Talvez para uma antiga burguesia endinheirada e com uma existência pastoreada por vasta criadagem hoje em dia o Natal seja mais aborrecido do que há meio século. Mas posso garantir que para a vasta maioria dos portugueses ele é muito mais divertido do que em 1955. Talvez para quem se mantém eternamente fiel à mesma mesa do mesmo restaurante, Lisboa hoje não passe de "uma mediocridade sem ordem ou alegria". Mas basta sair à rua para ver que se há coisa em que evoluímos drasticamente – e, neste caso, apesar da crise – é na qualidade da vida urbana e da restauração e na forma como uma classe média aprendeu a viver a cidade: as pessoas correm à beira-rio, andam de bicicleta, reúnem-se para beber um copo no final do trabalho.
Com a nossa típica memória de curto prazo, tendemos a esquecer o quanto evoluímos, o quanto melhorou a nossa qualidade de vida, o quão mais ricos hoje somos. A crise é terrível, está a fazer crescer as desigualdades e a mandar-nos uma década para trás. Eu não quero fechar os olhos a isso. Mas nós precisamos de ter a justa memória do nosso passado e uma avaliação sincera do nosso presente se queremos realmente construir um melhor futuro.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Talvez eu seja O sonho de mim mesma. Criatura-ninguém Espelhismo de outra Tão em sigilo e extrema Tão sem medida Densa e clandestina Que a bem da vida A carne se fez sombra. Talvez eu seja tu mesmo Tua soberba e afronta. E o retrato De muitas inalcançáveis Coisas mortas. Talvez não seja. E ínfima, tangente Aspire indefinida Um infinito de sonhos E de vidas. HILDA HILST Cantares de perda e predileção, 1983

Não é uma sugestão, é um mandamento

Nos Evangelhos Sinóticos, lemos muito sobre as pregações de Jesus a propósito do «maior mandamento». Não é a grande sugestão, o grande conselho, a grande linha diretiva, mas um mandamento. Primeiro, temos de amar a Deus com todo o coração e com toda a nossa força, sobre todas as coisas. Ao trabalhar com os pobres camponeses da América Central, que não sabiam ler nem escrever, a frase que eu sempre ouvia era: «Primero, Dios». Deus tem de ser o primeiro nas nossas vidas, depois, todas as nossas prioridades estão corretamente ordenadas. Não amaremos menos as pessoas, mas mais, por amar a Deus. A segunda parte do «maior mandamento» é amarmos o próximo como a nós mesmos. E Jesus ensina-nos, na parábola do Bom Samaritano, que o nosso próximo é esse estrangeiro, esse homem ferido, essa pessoa esquecida, aquele que sofre e, por isso, tem um direito acrescido sobre o meu amor. Jesus manda-nos amar os estranhos. Se só saudamos os nossos, não fazemos mais do que os pagãos e os não cr

Eis-me

Eis-me Tendo-me despido de todos os meus mantos Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses Para ficar sozinha ante o silêncio Ante o silêncio e o esplendor da tua face Mas tu és de todos os ausentes o ausente Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca O meu coração desce as escadas do tempo [em que não moras E o teu encontro São planícies e planícies de silêncio Escura é a noite Escura e transparente Mas o teu rosto está para além do tempo opaco E eu não habito os jardins do teu silêncio Porque tu és de todos os ausentes o ausente Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Livro Sexto'