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Qualquer coisinha, tenho fome

Não sei se há humilhação maior do que ter de estender a mão suja, que salta de um corpo e uma roupa também sujos, pedindo, com o corpo inclinado e o olhar perdido e suplicante: "Qualquer coisinha, tenho fome." Se é uma criança, com uma mãozinha pequenina, um velho, um deficiente, suplicando "por caridade, por caridade", parte-se-me a alma. Sinto-me muito envergonhado por mim e pela sociedade, e dou, numa indizível atrapalhação, pois precisaria de dizer-Ihes que não é por caridade, mas por dever. E desaparecer.


Dar generosamente. Nem a mão deveria aparecer, para não ser vista. Um grande amigo que já morreu - porque é que os amigos mor-rem?! - repetia constantemente: a mão que dá esconde-se. A partir daí, perguntei-me sempre: será por isso que não vemos Deus? Porque dá - Deus é Dar, o Dar Originário, Criador -, escondendo-se?


Eu sei que é uma vergonha que se dê e se receba por esmola aquilo a que se tem direito, de tal modo que há mesmo quem pense e argumente que o exercício da caridade é um modo de desacelerar a transformação social que deveria conduzir a uma sociedade justa. Ouve--se isso, por vezes injustamente e de modo irresponsável, também por ocasião das campanhas do "banco alimentar".


É evidente que é uma exigência empenharmo-nos todos, com energia e lucidez, pela justiça no mundo, mediante a transformação das estruturas sociais. Mas também é evidente que seria intolerável, a pretexto de agudizar as contradições para acelerar a revolução, não dar de comer à criança esfomeada, não ajudar o pobre na sua necessidade imediata.


Confrontada pelos jornalistas, Madre Teresa de Calcutá argumentou que é urgente que os poderosos discutam nos Fóruns Internacionais os problemas da organização da justiça no mundo e a distribuição da riqueza, mas, enquanto se alcançam ou não acordos eficazes, as missionárias da caridade dedicar-se-ão a recolher das ruas, um a um, os moribundos e os enfermos que já ninguém ampara nem cuida.


Na sua exortação "A Alegria do Evangelho", o Papa Francisco denuncia o mero assistencialismo: "Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais". Mas não deixa de sublinhar que se deve entender o pedido de Jesus aos discípulos, no Evangelho segundo São Marcos: "dai-lhes vós mesmos de comer", como envolvendo "tanto a cooperação para resolver as causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres como os gestos mais simples e diários de solidariedade para com as misérias muito concretas que encontramos".


Também Bertolt Brecht, o famoso dramaturgo marxista que se fazia acompanhar da Bíblia, escreveu estes admiráveis versos sobre a necessidade de não desvincular a justiça da caridade nem esta daquela: "Contaram-me que em Nova Iorque,/na esquina da Rua Vinte e Seis com a Broadway,/nos meses de inverno, há um homem todas as noites/ /que, suplicando aos transeuntes,/procura um refúgio para os desamparados que ali se reúnem./ /Não é assim que se muda o mundo,/as relações entre os seres humanos não se tornam melhores./Não é este o modo de encurtar a era da exploração./No entanto, alguns seres humanos têm cama por uma noite./Durante toda uma noite estão resguardados do vento/e a neve que lhes estava destinada cai na rua.//Não abandones o livro que to diz, homem./ Alguns seres humanos têm cama por uma noite,/durante toda uma noite estão resguardados do vento/e a neve que lhes estava destinada cai na rua./Mas não é assim que se muda o mundo,/as relações entre os seres humanos não se tornam melhores./Não é este o modo de encurtar a era da exploração."


Anselmo Borges

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