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Mensagens

A mostrar mensagens de dezembro, 2019
Eu falo das casas e dos homens, dos vivos e dos mortos: do que passa e não volta nunca mais... Não me venham dizer que estava matematicamente previsto, ah, não me venham com teorias! Eu vejo a desolação e a fome, as angústias sem nome, os pavores marcados para sempre nas faces trágicas das vítimas. E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima, uma insignificante parcela da tragédia. Eu, se visse, não acreditava. Se visse, dava em louco ou profeta, dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada, - mas não acreditava! Olho os homens, as casas e os bichos. Olho num pasmo sem limites, e fico sem palavras, na dor de serem homens que fizeram tudo isto: esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira, esta lama de sangue e alma, de coisa e ser, e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança, se o ódio sequer servirá para alguma coisa... Deixai-me chorar - e chorai! As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos, de termos sancionado com o nosso silêncio
Sou composta por urgências: minhas alegrias são intensas; minhas tristezas, absolutas. Me entupo de ausências, me esvazio de excessos. Eu não caibo no estreito, eu só vivo nos extremos. Eu caminho desequilibrada, em cima de uma linha tênue entre a lucidez e a loucura. De ter amigos eu gosto porque preciso de ajuda pra sentir, embora quem se relacione comigo saiba que é por conta-própria e auto-risco. O que tenho de mais obscuro, é o que me ilumina. E a minha lucidez é que é perigosa. Clarice Lispector
trinta cisnes no lago dos teus olhos. foi o que disse. não significa nada. não poderiam aí nadar. foi uma imagem. uma ideia. uma vontade grande de dizer que te amo e que vejo em ti tudo quanto sendo impossível faria da vida um lugar perfeito Valter Hugo Mãe
Comovem-me ainda os dias que se levantam no deserto das nossas vidas. Dos belos palácios da saudade não resta a impressão dos dedos nas colunas fendidas, e nada cresce nos pátios. Muito além, depois das casas, o último marinheiro continua sentado. Os seus cabelos são brancos, pouco a pouco. Aqui, tudo se resume a algumas tâmaras que secaram ao sol, longe do orvalho, das fontes que pareciam nascer de um olhar turvo sobre a sede da terra. Comovem-me ainda as palavras que dizias aos meus ouvidos aprisionados pela música. Comovem-me as cadeiras vazias, no pátio. Lembro-me sempre de ti. José Agostinho Baptista
Vive, dizes, no presente; Vive só no presente. Mas eu não quero o presente, quero a realidade; Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede. Alberto Caeiro
Quatro anos depois voltei a visitar Nguezi. Estava bastante doente e completamente cego. Perguntei por que razão se tinha recusado a deslocar-se à cidade. A reposta dele foi: não fui porque tinha medo de ver o mar. (...) Na altura, confesso, tive medo que o caçador pedisse que lhe explicasse o que era o mar. Esse medo que então senti é o mesmo que sinto hoje diante da autossuficiência de um certo discurso científico. O mar, o amor, a paixão, a beleza e tantas outras entidades só têm explicação se foram vazadas de vida. É desta simplificação que tenho medo. Mia Couto Conferência de abertura do Brain Congress, Brasil, 2017 O universo num grão de areia
Senhor, peço-Te que me dês a graça de olhar o mundo com os teus olhos na esperança de que, sentindo como Tu sentes, aja como tu ages. Rui Fernandes, sj
Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado. Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos, com os livros atrás a arder para toda a eternidade. Não os chamo, e eles voltam-se profundamente dentro do fogo. -Temos um talento doloroso e obscuro. construímos um lugar de silêncio. De paixão. Herberto Helder
servissem essas palavras bonitas neste tempo em que nem a verdade procuro fossem elas estéreis, estilhaço de um vaso mal parido, e eu ouvia. apetece-me o que é rude e áspero de se engolir tenho fome do que é errado, vil e sombrio durmo, sonho com tristeza e não me digno a chamar-lhe pesadelo quero o que é fraco e renegado e estafermo falem-me de pessoas com alma novamente porque o que me contam repetidamente, incessantemente, fervorosamente é de gente que apenas traz a carne colada aos ossos. PO
Chegará o tempo em que, com alegria, te saudarás a ti mesmo ao tocares à tua porta, ao olhares-te no espelho, e cada um dará ao outro as boas-vindas com um sorriso, e dirás, senta-te aqui e come. Amarás de novo o estranho que há em ti. Oferece-lhe vinho. E pão. Devolve o teu coração, ao estranho que te amou toda a tua vida, aquele a quem trocaste por outro, aquele para quem não tens segredos. Varre as cartas de amor da estante, as fotografias, os bilhetes desesperados, Arranca a pele à tua imagem no espelho. Senta-te. Festeja contigo a tua vida. Derek Walcott
Fala-se muito para os jovens, fala-se pouco com os jovens. Pior que o silêncio é o diálogo falso. (...) Uma coisa me parece certa: é melhor uma juventude inquieta do que uma juventude submissa. Sobretudo porque nenhuma juventude é tão submissa assim. O que não pode florescer no tempo certo acaba sempre por explodir mais tarde. o universo num grão de areia Mia Couto
A palavra brincar vem do latim e tem como radical o termo "brinco", que, na sua raiz morfológica, quer dizer "vinculu/vinculum". O que fazemos quando brincamos é criar vínculos com os outros e com o mundo. o universo num grão de areia Mia Couto
Grande parte das línguas bantu do meu país não possui palavras específicas para dizer "pobre". Para designar um pobre diz-se "chissiwana". Essa palavra quer dizer "órfão". Pobre é quem vive sem família nem amigos, pobre é quem perdeu os laços de solidariedade. o universo num grão de areia Mia Couto