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Mensagens

A mostrar mensagens de abril, 2016
Escrevo para apagar o que escrevi como se pudesse retornar à nascente e começar pela primeira vez o que nunca disse o que nunca poderia dizer ou que talvez tenha dito sem o saber Vou escrevendo como um náufrago da página nadando na brancura mas sem rumo certo procurando as palavras ao nível deste solo Mas para que as palavras respirem é preciso que o silêncio respire Quando por felicidade respiram é como se fosse a respiração da água E então não deixam rastro porque tudo o que dizem é a melodia da água que se esvai e continua sempre pela primeira vez sempre uma única vez É esta a minha condição fatal e por isso necessária. Não posso dizer nada senão a impossibilidade que nela existe de ser música insignificância maravilha nudez um elemento imponderável e transparente António Ramos Rosa, O Deus da Incerta Ignorância, seguido de Incertezas ou Evidências, p. 78 (Pedra Formosa, 2001)

O segredo de cada homem

O segredo de cada homem é enquadrar-se no seu tempo. É o seu degredo, também, e pode ser a sua morte. Mas quem disse que a vida não é uma questão de vida ou morte? É pela mesma razão que sempre pomos a vida primeiro nesta expressão. O segredo é essa tentativa: o que queremos está sempre entre dois tempos e entre dois verbos: amar ou perder. Sem medo. ricardo marques metamorphoses relâmpago revista de poesia 36/37 fundação luís miguel nava 2015

Damien Rice

Há momentos que se enchem de magia ainda quando se adivinham em expectativa. Vemos-nos dia 12 de Julho!

Ninguém merece ficar para além dos sonhos.

Querida mãe, Querido pai: O tempo passa sobre as lágrimas que choro, já nem cicatrizes tenho do que um dia me feriu. E no entanto a memória. A insuportável da memória. Ninguém merece uma memória feliz. E eu fui. E nós fomos. Felizes. A casa cheia com a nossa alegria dentro. O quintal, o avô a contar mil e duas vezes as histórias que já tinha contado mil e uma vezes, a avó sempre preocupada em encher a mesa, os tios a dizerem que a vida custa. E custa, pai. E custa, mãe. Ninguém merece uma casa vazia. E os cheiros. Os cheiros não passam. Os cheiros são a melhor forma de se sofrer. Cheiro a cozinha onde um dia a vida. Onde um dia o sonho. Eu menino na cozinha cheia do avô, da avó e dos tios. Eu menino a sonhar com eu grande, grande como os tios – «um dia vou ser rico e comprar muitas coisas». Eu menino a querer crescer. Ninguém merece um corpo que cresce. E a perda. A miserável da perda. A avó com um cancro dentro. O avô a ceder a cada dia que a sua Maria se ia. E os tios

10 ways to have a better conversation | Celeste Headlee

Sou o que amo

O que somos depende do que amamos. Só quem se dá aos outros se liberta do egoísmo. Ser é amar. Realizar-se na entrega de si ao outro. O que sou não se limita ao que penso que sou, tão-pouco ao que penso que os outros julgam de mim. É mais. Sou também aquilo que recebo quando me esqueço de mim e me abro ao outro, e aquilo que fica de mim nos outros, quando a eles me dou... Não sou apenas um aqui e agora. Sou também o que fui... e o que hei de ser. Sou o que quero concretizar da minha essência, as sementes que decido regar de entre as que existem em mim. A minha identidade faz-se dos muitos e pequenos passos que vou escolhendo dar... cada momento da vida é tão importante quanto insignificante. Sofremos, por vezes, golpes fundos. O tempo nem os apaga nem os cura. São partes de nós, todas elas boas, porque são parte de nós. As tempestades, muitas vezes, aproximam-nos de quem nos quer bem... As dores fazem-nos família. Quando amo, e sou aceite, também sou no outro... e
Se quiseres conhecer uma pessoa, escuta-lhes os sonhos. Mia Couto No livro "Mulheres de Cinza" Photo by © Charly Lataste

Eu sei, mas não devia

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar

Comovem-me ainda os dias

Comovem-me ainda os dias que se levantam no deserto das nossas vidas. Dos belos palácios da saudade não resta a impressão dos dedos nas colunas fendidas, e nada cresce nos pátios. Muito além, depois das casas, o último marinheiro continua sentado. Os seus cabelos são brancos, pouco a pouco. Aqui, tudo se resume a algumas tâmaras que secaram ao sol, longe do orvalho, das fontes que pareciam nascer de um olhar turvo sobre a sede da terra. Comovem-me ainda as palavras que dizias aos meus ouvidos aprisionados pela música. Comovem-me as cadeiras vazias, no pátio. Lembro-me sempre de ti. José Augusto Baptista

O voo das gaivotas

Começam o dia louvando o imperfeito: o tempo que se inclina para o lado partido as escassas laranjas que se tornam amarelas no meio da palha as talhas sem vinho Olham por dentro a brancura da manhã e em tudo quanto auxilia um homem no seu ofício louvam o vulnerável e o inacabado Estão sentados à soleira dos espaços trabalhados devagar pelo silêncio Quando Deus voltar Não terá de arrombar todas as portas José Tolentino Mendonça