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A alegria dos outros


As pessoas felizes são aquelas capazes de dedicar-se a alegrias que não lhes pertencem. De conspirar discretamente para que elas aconteçam. De favorecê-las de muitas maneiras. E, por fim, de apagar-se para dar-lhes todo o lugar.



Acho que me encontrei uma única vez com Miguel Esteves Cardoso. Foi, inclusive, um desses encontros de acaso: eu i-a almoçar com um amigo e encontrei-o num restaurante, pronto para fazer o mesmo com um amigo seu, que era meu também. Rapidamente, as mesas para dois transformaram-se numa única mesa maior. E assim ficámos, fazendo aquilo que à mesa de faz: alimentando-nos da comida, mas igualmente (ou sobretudo) da presença, esperada e inesperada, uns dos outros. O Miguel Esteves Cardoso estava nessa altura com um projeto de um livro sobre um mestre de cozinha japonês, que fez questão de tratar, ele próprio, de tudo aquilo que nos foi servido. Recordo-me que, no breve tempo que durou a refeição, aprendi imensas coisas sobre aquele mundo. Aprendi, por exemplo, que o prato mais exigente da cozinha japonesa, aquele que constitui a prova suprema para qualquer chefe, é... o arroz. Não se deve estranhar. Nada nos pede mais trabalho e arte do que a simplicidade. E foi dessa maneira que, conversa vai, conversa vem, o Esteves Cardoso disse uma coisa que não mais deixou de acompanhar-me. Não sei se seriam exatamente estas as suas palavras, mas era este o sentido: não há nada mais miserável em nós do que não sabermos alegrar-nos com a alegria dos outros. Compreender a dor dos outros e sair-lhes ao encontro é uma regra indiscutível. Mesmo quando pouco podemos fazer paca alterar as circunstâncias dolorosas que vivem, a presença é uma confirmação preciosa e necessária daquilo que nenhum sofrimento poderá abalar a certeza de que, aconteça o que acontecer, não estão sós. E todos experimentamos como isso se torna determinante em certas horas. Porem, acompanhar os outros na sua alegria não é tarefa de menor préstimo. Não é certamente por acaso que, em algumas parábolas de Jesus, o pedido a que a alegria seja acompanhada se confunda com as possibilidades de a própria alegria tomar-se o que ela é: júbilo, canto, riso, estremecimento feliz que se expande. “AIegrai-vos comigo, porque achei a minha ovelha perdida" (Lc. 15.6); “Alegrai-vos comigo, porque encontrei a moeda perdida" (Lc. 15.9). E, na mesma linha o pai do filho pródigo explicando ao filho mais velho, perplexo com o perdão concedido àquele seu irmão desencaminhado: "Tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu, estava perdido e encontrou-se" (Lc 15,32). Uma alegria que não se possa partilhar parece uma alegria que a meio caminho se rompe, que não chega sequer a consumar-se.

E preciso, contudo, que aprendamos a disponibilidade para nos alegrarmos com o bem que acontece aos outros, e a fazê-lo gratuitamente, sem pensar no que possamos receber em troca. Implica vencermos o tique contínuo de nos compararmos (e, quase sempre, em plano de superioridade); contrariarmos pulsões mesquinhas, mesmo se travestidas de grandes sentimentos ou razoes; suspendermos juízos cínicos sobre méritos e deméritos; distanciarmo-nos dessa forma destrutiva de admiração que a inveja é. Bernanos escreveu que "saber encontrar a alegria na alegria dos outros é o segredo da felicidade". As pessoas felizes são aquelas capazes de dedicar-se a alegrias que não lhes pertencem. De conspirar discretamente para que elas aconteçam De favorecê-las de muitas maneiras. E, por fim, de apagar-se para dar-lhes todo o lugar.

Talvez, para isso, tenhamos de reinventar a gramática humana que utilizamos e, com ela, reinventar itinerários, atitudes e até formas verbais. Como aquela surpreendente, que aparece ligada à alegria num poema de Fernando Pessoa: "Passou a nuvem: o sol volta/ A alegria girassolou."



Por José Tolentino Mendonça, ©Revista 16/NOV/13, p. 6

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