Avançar para o conteúdo principal

O monstro e a pessoa ideal

Por mais fantástica que seja a tua roupa, ela está mais bem vestida.
Por muito competente que sejas, ela faz um trabalho melhor.
Por muito divertidas que sejam as tuas histórias, ela faz sempre rir mais.
Por muito bem que cozinhes, ela cozinha pratos ainda melhores.
Por muito bem que penses, fales ou vivas… ela é sempre melhor.

Mas afinal quem é esta pessoa?
É simplesmente a construção que fizémos na nossa cabeça da pessoa ideal. É a imagem que inventámos algures pelo caminho, da pessoa que queremos para partilhar a nossa vida. Tipicamente é uma pessoa desenhada para uma relação próxima, mas há quem se especialize em fabricar dezenas de pessoas ideais, para aplicar a amigos, colegas e até estranhos. Depois de estar fabricada, esperamos genuinamente que as pessoas de carne e osso correspondam a ela.

Esta pessoa ideal – mesmo estando apenas na nossa cabeça – tem uma influência grande na nossa vida: há relações que não começam porque alguém não cumpre todos os requisitos da pessoa ideal. Há namoros que acabam porque um dos namorados não consegue ser como a pessoa ideal. Há casamentos que passam por dificuldades porque a pessoa ideal intromete-se demasiada vezes na vida do casal…
Mas porque criamos esta pessoa na nossa cabeça?
Por um lado é porque querermos o melhor para nós. Queremos miminhos, queremos ser gostados e tratados bem, e queremos que quem o faça seja uma pessoa fantástica. Por outro lado, queremos que a outra pessoa apague todas as nossas fraquezas. Projectamos no outro a responsabilidade de nos livrar de tudo o que nos incomoda. Queremos alguém que nos venha salvar das nossas falhas.

inesperado.org - a pessoa ideal
Contudo…o que esconde esta pessoa ideal?
O segredo que torna esta pessoa invencível em todas as áreas é o facto de ser um monstro. É um frankenstein, uma coleccção de várias pessoas diferentes, uma montagem sinistra de mil personalidades diferentes. A pessoa ideal tem que ser linda, inteligente, atenta, interessante, divertida, profunda, generosa e por aí fora, numa combinação impossível de virtudes. Acabámos por criar na nossa cabeça um monstro que tratamos como um ídolo.

O que podemos então fazer com essa pessoa?
Não vale a pena lutar com ela, porque a pessoa ideal é invencível. Mas na realidade, o problema não é haver uma pessoa ideal na nossa mioleira. O problema é levá-la demasiado a sério. Levar a sério as regras que criámos, levar a sério os critérios que inventámos, levar a sério a pessoa que fantasiámos. Esta pessoa – este monstro – é implacável com quem quer que seja. Põe a expectativa tão alta, que rebenta com qualquer possibilidade de alguém nos agradar ou surpreender.

Temos que saber brincar com ela. Saber que ela anda para ali, mas não levá-la demasiado a sério. É apenas uma ideia, teve o seu interesse em tempos, mas agora já não serve para a vida que vivemos. Somos livres de deixar o monstro de lado.
A ironia é que a pessoa ideal é incapaz de nos dar o amor que tanto desejamos. Os monstros não amam.
Todo o amor que queremos, lutamos e procuramos, vem apenas das pessoas realíssimas – de carne e osso – que rodeiam a nossa vida. A fantasia não nos dá nada do que precisamos, apenas o real nos pode encher as medidas. Tudo o que nos liberta, nos cura e nos realiza, vem do que é real.

Pela frente ficamos apenas com uma escolha: a pessoa real que temos à frente, ou a ideal que temos na cabeça.
Como vai ser?

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Não é uma sugestão, é um mandamento

Nos Evangelhos Sinóticos, lemos muito sobre as pregações de Jesus a propósito do «maior mandamento». Não é a grande sugestão, o grande conselho, a grande linha diretiva, mas um mandamento. Primeiro, temos de amar a Deus com todo o coração e com toda a nossa força, sobre todas as coisas. Ao trabalhar com os pobres camponeses da América Central, que não sabiam ler nem escrever, a frase que eu sempre ouvia era: «Primero, Dios». Deus tem de ser o primeiro nas nossas vidas, depois, todas as nossas prioridades estão corretamente ordenadas. Não amaremos menos as pessoas, mas mais, por amar a Deus. A segunda parte do «maior mandamento» é amarmos o próximo como a nós mesmos. E Jesus ensina-nos, na parábola do Bom Samaritano, que o nosso próximo é esse estrangeiro, esse homem ferido, essa pessoa esquecida, aquele que sofre e, por isso, tem um direito acrescido sobre o meu amor. Jesus manda-nos amar os estranhos. Se só saudamos os nossos, não fazemos mais do que os pagãos e os não cr
Talvez eu seja O sonho de mim mesma. Criatura-ninguém Espelhismo de outra Tão em sigilo e extrema Tão sem medida Densa e clandestina Que a bem da vida A carne se fez sombra. Talvez eu seja tu mesmo Tua soberba e afronta. E o retrato De muitas inalcançáveis Coisas mortas. Talvez não seja. E ínfima, tangente Aspire indefinida Um infinito de sonhos E de vidas. HILDA HILST Cantares de perda e predileção, 1983

Oh Senhor

Ó Senhor, que difícil é falar quando choramos, quando a alma não tem força, quando não podemos ver a beleza que tu entregas em cada amanhecer. Ó Senhor, dá-me forças para poder encontrar-te e ver-te em cada gesto, em cada coisa desta terra que Tu desenhaste só para mim. Ó Senhor, sim, eu seu preciso da tua mão, do abraço deste amigo que não está. Dá-me luz, à minha alma tão cansada, que num sonho queria acordar. Ó Senhor, hoje quero entregar-te o meu canto com a música que sinto. Eu queria transmitir através destas palavras. Fico mais perto de ti.