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Que Senhor!

A reter: Porque os meus amigos não são aqueles para quem fui tudo até ao momento em que passei a ser nada, não são aqueles que me abandonaram quando deixei de lhes ser útil, os meus amigos não são aqueles com quem partilhei segredos e que, anos mais tarde, quando nos cruzamos por acaso, nem sei se hei-de cumprimentá-los.


José Luís Peixoto, Crónica publicada na VISÃO
16:34 Segunda feira, 28 de Abril de 2014


Dou pouca conveniência aos meus amigos.

Não escrevo prefácios. Por telefone, por email ou ao vivo, começam a elogiar-me. Com os anos, fui-me acostumando e identifico a situação logo nessa fase. Então, enquanto espero que terminem, vou ensaiando a resposta na cabeça. Por fim, quando me fazem o convite para lhes prefaciar o seu novo livro, que pode ser uma antologia de contos, poemas ou crónicas, um romance ou um ensaio sobre o século XVII, já tenho as minhas razões prontas e começo a enumerá-las. Quase como se estivesse a escrever um desses prefácios, escolho palavras que não choquem e explico que considero esses textos humilhantes para os livros que prefaciam, sem mais benefício do que uma ilusão comercial ou de estatuto. Tento explicar que conheço bem a vontade de encontrar um público, mas que não acredito que consigam alcançá-lo através desses prefácios vazios e desnecessários de nomes conhecidos. Quando termino, já está bem claro que me retiraram os elogios iniciais, perderam a validade.

Não sugiro os livros a editores. Nesse caso, o problema é de outra natureza. O desinteresse repetido que mostraram pelas minhas sugestões fez-me perder a confiança. Entre os editores e eu, há livros, podemos mesmo ser vistos juntos, em diálogo ameno, mas existimos em dimensões diferentes. Ignorando a crueza desse desencontro, recebo pedidos para ler blogues ou montes de folhas, solicitam a minha opinião. A experiência mostrou-me que, na maioria das vezes, não há qualquer vontade real de conhecer o que penso. Trata-se quase sempre de pedidos de confirmação: eles já sabem que são bons, génios da literatura, apenas precisam de uma declaração escrita, um certificado. E mesmo que fossem aquilo que julgam, os editores não me ouvem, como já disse. Mas, parando um instante, porque haveriam de ouvir? Seriam maus editores se as minhas opiniões tivessem o peso que esses pedidos de leitura supõem.

Não faço elogios públicos. Nunca utilizei textos como este, ou como outros, parentes deste, publicados noutras páginas, para gabar amigos ou conhecidos. Defendo os elogios. Acredito que não há elogios suficientes. Sou contra a austeridade de elogios. Os elogios enobrecem quem os faz. No entanto, repugnam-me quando fazem parte de um mercado de troca directa. A detracção de alvos escolhidos, inimizades de amigos, é uma das faces desse mesmo comércio, mas ainda mais repugnante, fruto de inseguranças não assumidas. Entrar nesse jogo é como mentir, não tem saída: uma mentira precisa sempre de novas mentiras que a justifiquem.

Não dedico textos. Uma licenciatura em línguas e literaturas modernas pode ser utilizada para vários fins. A mim, serviu-me para, entre outras coisas, firmar a convicção de que todos os elementos textuais devem contribuir para o sentido do texto literário a que se referem. Ou seja: eu dedico textos, mas tem de haver uma razão, uma intenção, que acrescente significado formal ou semântico ao próprio texto. Se eu quiser agradecer aos meus amigos, ou demonstrar-lhes que gosto deles, escrevo-lhes um email, não lhes dedico um livro. Este é, aliás, um bom modo de se evitar que, anos mais tarde, se passe pelo triste papel de apagar dedicatórias de reedições.

Os meus amigos sabem tudo isto sobre mim. Mais, sabem que ando sempre a correr atrás de alguma coisa e que, por isso, pode passar muito tempo entre os nossos encontros. Também eles andam a correr atrás de alguma coisa. Havemos de marcar um almoço, havemos de marcar um café, repetimos a acreditar que vai ser assim. Sentimos falta, mas habituámo-nos a ela. Quando, finalmente, estamos no mesmo lugar, somos desconhecidos para os filhos uns dos outros que, entretanto, cresceram bastante. Então, temos muito para contar, actualizações antigas que nos mostram o verdadeiro tamanho do tempo que passou. Mas o à-vontade mantém-se intacto. Porque os meus amigos não são aqueles para quem fui tudo até ao momento em que passei a ser nada, não são aqueles que me abandonaram quando deixei de lhes ser útil, os meus amigos não são aqueles com quem partilhei segredos e que, anos mais tarde, quando nos cruzamos por acaso, nem sei se hei-de cumprimentá-los.


Ler mais: http://visao.sapo.pt/aquilo-que-os-meus-amigos-esperam-de-mim=f777982#ixzz30MrDnQpx

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