Avançar para o conteúdo principal

Estrelas

Podiam dar-nos a manhã que não acaba,
um sol branco feito de madrugada,
um céu de linho que a morte assombra,
o fogo frio num arauto em cinza.

Podiam cair os nevões de Janeiro,
as frases corridas de uma tarde chuva,
o relâmpago que não ficou à espera,
e o incêndio no enxame das florestas.

Podia pensar com a febre de quem está só,
pensar que não é preciso apenas pensar,
e pensar sem ter em que pensar,
ou pensar que um pensamento não vem só.

Podia ver a linha no fim do mar,
os barcos que dali nunca saíram,
o mastro que os temporais quebraram,
e as estrelas que o marinheiro procurou.

Mas tenho a vida nas mãos vazias,
passo-as por água para limpar a vida,
e a vida não me sai da palma da mão,
a vida fica sem nunca lá ter estado.

E quando me pegas na mão que te dou
descobres que não há vazio sem vida,
e tiras do vazio a vida que lá está
para que a vida saia de dentro do vazio.

Como se a vida tivesse algum peso,
e a pudesse dar na linha desta mão,
ponho a mão na mão que me dás
para que as vidas se troquem numa linha.

E a manhã vai dar luz à tarde,
a tempestade acalma o dia de sol,
penso sempre que não penso,
desenho bússolas numa tinta de estrelas.


Nuno Júdice

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Não é uma sugestão, é um mandamento

Nos Evangelhos Sinóticos, lemos muito sobre as pregações de Jesus a propósito do «maior mandamento». Não é a grande sugestão, o grande conselho, a grande linha diretiva, mas um mandamento. Primeiro, temos de amar a Deus com todo o coração e com toda a nossa força, sobre todas as coisas. Ao trabalhar com os pobres camponeses da América Central, que não sabiam ler nem escrever, a frase que eu sempre ouvia era: «Primero, Dios». Deus tem de ser o primeiro nas nossas vidas, depois, todas as nossas prioridades estão corretamente ordenadas. Não amaremos menos as pessoas, mas mais, por amar a Deus. A segunda parte do «maior mandamento» é amarmos o próximo como a nós mesmos. E Jesus ensina-nos, na parábola do Bom Samaritano, que o nosso próximo é esse estrangeiro, esse homem ferido, essa pessoa esquecida, aquele que sofre e, por isso, tem um direito acrescido sobre o meu amor. Jesus manda-nos amar os estranhos. Se só saudamos os nossos, não fazemos mais do que os pagãos e os não cr
Talvez eu seja O sonho de mim mesma. Criatura-ninguém Espelhismo de outra Tão em sigilo e extrema Tão sem medida Densa e clandestina Que a bem da vida A carne se fez sombra. Talvez eu seja tu mesmo Tua soberba e afronta. E o retrato De muitas inalcançáveis Coisas mortas. Talvez não seja. E ínfima, tangente Aspire indefinida Um infinito de sonhos E de vidas. HILDA HILST Cantares de perda e predileção, 1983

Oh Senhor

Ó Senhor, que difícil é falar quando choramos, quando a alma não tem força, quando não podemos ver a beleza que tu entregas em cada amanhecer. Ó Senhor, dá-me forças para poder encontrar-te e ver-te em cada gesto, em cada coisa desta terra que Tu desenhaste só para mim. Ó Senhor, sim, eu seu preciso da tua mão, do abraço deste amigo que não está. Dá-me luz, à minha alma tão cansada, que num sonho queria acordar. Ó Senhor, hoje quero entregar-te o meu canto com a música que sinto. Eu queria transmitir através destas palavras. Fico mais perto de ti.