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Ficar até ao fim, por amor, mesmo quando doer. Enterrar esta pequenina foi das coisas mais difíceis que fiz. 
Não doi só po-la dentro dum saco, cavar o buraco, cobri-la com terra, procurar-lhe flores. Não doi só porque aqui quase não há flores. Não doi só abraçar a avó e o pai, não doi só chorar com eles. Não doi só ela ser criança e nem sequer ser suposto as crianças morrerem. Não doi só porque as crianças deviam só viver, brincar, crescer, ir à escola e apanhar elas flores. Não doi só perde-la, não doi só a morte, não doi só ser para sempre. Não doi só por conhece-la, por saber-lhe o nome, o rosto, a história de vida que carrega no coração. Isso doi, muito, mas não é só isso que doi.
Doi perceber que estas coisas continuam a acontecer todos os dias e continuamos a perde-los e a cavar buracos todos os dias porque a guerra nos países deles não nos tira a paz a cada um de nós. Porque o caminho que fazem, a fugir, não nos cansa. Porque o medo que sentem não nos assusta nem nos tira o sono na hora de ir dormir. Porque a fome deles não nos condiciona o jantar que temos à nossa frente na mesa. Porque a dor deles não nos doi e a morte deles não tira nada à nossa vida. As coisas não vão mudar enquanto as nossas vidas não forem mais sobre estas pessoas a quem as coisas mais básicas foram negadas. Não falo só de comida, saúde, higiene, educação. Falo sobretudo de amor e de paz. 
Enquanto isso não acontecer vamos continuar a perde-los, a cavar buracos e a procurar flores onde já não nascem flores. É isso que doi.

Lokas 
Campo de refugiados do Cacanda, norte de Angola

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