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Já não se espera nada de nós?
Irene Guia, Aci
23 Abril 2018
https://pontosj.pt/opiniao/ja-nao-se-espera-nada-de-nos/


Invade-me uma indignação que até sinto fisicamente quando a falta de verdade, as “falcatruas”, os “esquemas” ilícitos, que vêm à ribalta não encontram a correspondente resposta moral.

A última vez que a senti foi quando mais um caso de “enriquecimento ilícito” de um Curriculum Vitae teve como reação de uma relevante figura pública, com um cargo de grande responsabilidade, o seguinte comentário publicado pelo Expresso a 11 de março de 2018: «é inequívoco que ele fez referência a um aspeto do seu currículo que não era preciso e corrigiu, é esta informação que eu tenho e ele deu essa informação à comunicação social».

A única resposta que eu queria, que eu precisava de ter ouvido, era: é grave se o fez, é talvez ainda mais grave se se o está falsamente a acusar. Que jogadas, que esquemas, que dívidas retribuídas em favores nos impedem de continuar a ser moralmente livres? Um aspeto que afinal não era preciso no CV foi corrigido pelo próprio e, com isso, parece ficar satisfeita a preocupação de um seu responsável.

A 8 de abril, Helena Matos escrevia no Observador: «O que é a coisa? A coisa é aquele excipiente que leva a que num determinado momento tudo se inverta, passando os réus a vítimas. Os crimes hediondos a factos irrelevantes, quando não a cabalas. A coisa primeiro estranha-se. Depois entranha-se. A coisa acontece quando a pertença política dos investigados se sobrepõe ao julgamento sobre a natureza dos seus atos».

Fico indignada e fico preocupada! Preocupada se, «pela habituação, já não enfrentamos o mal e permitimos que as coisas “continuem como estão” ou como alguns decidiram que estejam», como alerta o Papa Francisco na sua nova exortação apostólica Gaudate et Exsultate (GE), 137.

Preocupada com a produção de injustiça que esta forma de proceder implicitamente acarreta e ainda mais preocupada com o impacto que ela tem no que virão a ser, como adultos, os mais novos que ainda estão a crescer! Preocupada se o que lhes estamos a oferecer não os está já a impedir de conhecer o valor da Verdade, da palavra dada, da honradez. Preocupada se estas palavras as possam já estar a viver como realidades irrelevantes ou, pior ainda, incompreensíveis.

Preocupada porque, talvez, também nós, ao nosso nível, possamos estar a participar neste esvaziar constante do seu sentido. «A realidade mostra-nos como é fácil entrar nas súcias da corrupção, fazer parte dessa política diária do “dou para que me deem”, onde tudo é negócio. E quantas pessoas sofrem por causa das injustiças, quantos ficam assistindo, impotentes, como outros se revezam para repartir o bolo da vida. Alguns desistem de lutar pela verdadeira justiça, e optam por subir para o carro do vencedor» (GE, 78).

Quanto tempo, quantas gerações serão necessárias para voltar a repor a Verdade, o valor da palavra dada e a honradez como expressões da nossa dignidade, como pilares de uma sociedade de direito que pratica a Justiça?

Será possível experimentar a beleza imensa da justiça se perdermos a noção da Verdade? Será possível ser justo sem ser honrado? Será possível separar as nossas pequeníssimas “corrupções” das gigantes e moralmente justifica-las? Será que a crença de que “isto não faz mal a ninguém” não acaba por afetar a própria consciência, chegando a silenciá-la? Será possível pensar que se pode conciliar o que é inconciliável?

Subir para o carro do vencedor é fácil, é comum e acontece muito mais frequentemente na nossa vida do que podemos publicamente admitir. Sabemo-lo todos. Mais do que nunca, a qualidade da nossa verdade e da nossa honra dependerá das perguntas que sejamos capazes de nos colocar.

Será que já não se pode esperar nada de nós porque pelas vicissitudes da vida e pelo mero cansaço, acabámos por subir para o carro do vencedor e nos fomos instalando cómoda e progressivamente no banco de trás?

«Aquilo que deixarmos passar em branco hoje, amanhã ocorrerá de novo, até que façamos disso um hábito e também nós nos transformemos numa engrenagem indispensável» (Papa Francisco, em Deus é jovem).

O nosso presente e o presente das futuras gerações jogar-se-ão na decisão que tomarmos quotidianamente entre subir para o carro do vencedor ou subir o rio, a contracorrente, como o fazem a truta e o salmão, nitidamente em esforço e com incómodo, mas com a força da certeza de vir a encontrar águas mais puras onde possa nascer a vida nova.

De nós deve esperar-se, sempre, nunca desistirmos de lutar pela verdadeira Justiça.

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