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Milhares de guineenses vivem por estes dias à sombra das árvores e das incertezas, apanhando caju, o principal produto que a terra dá, mas sem saber se, devido ao golpe de Estado, o poderão vender.
Homens e mulheres, novos e velhos, deixaram as cidades e começaram um trabalho de quatro meses, sem pensar muito nas voltas e reviravoltas políticas e militares de Bissau mas sabendo que delas depende o seu futuro.
Os relatórios do FMI referem o produto, que consoante boa ou má campanha faz subir ou descer o produto interno bruto. Na Guiné-Bissau, 85 por cento das pessoas das zonas rurais são pequenos produtores e no total o país exportou em 2011 quase 200 mil toneladas de caju, que renderam 156 milhões de euros (segundo o presidente da Comissão Nacional do Caju).
São números que agora pouco importam. Como pouco importa o golpe de Estado de dia 12 e que deixou o país mergulhado numa crise sem vim à vista.
Pouco importa o que vai na praça (centro de Bissau) para Augusta Djú, pouco importa para Paulina Có, pouco importa para uma idosa de Prabis (arredores de Bissau) que fica grata por vender quatro mangas por mil francos (1,5 euros) e poder comprar um quilo de arroz.
“Só tenho manga verde e caju para dar aos meus filhos”, queixa-se outra mulher, não muito longe de onde Paulina Có passa as manhãs a encher baldes de caju.
“Seis bacias por dia”, conta à Lusa Paulina Có, moradora de Bissau mas nascida em Prabis, onde volta todos os anos para a apanha do caju. Sai cedinho com os baldes e bacias e é fácil enchê-los, porque não se passa um minuto que não se oiça mais um caju a cair.
Apanha-se apenas a fruta que cai. Paulina leva tudo, o fruto seco (a castanha) e o fruto em si, polposo e sumarento. Depois tira a castanha e passa a tarde a esmagar o fruto (o pedúnculo) para um bidão. Da “água de caju” fermentada faz o vinho, afinal o único proveito que tem, porque a castanha do caju pertence ao dono da quinta.
Como Paulina são milhares de apanhadores e de fazedores de vinho. Augusta Djú não tira as mãos dos pequenos frutos entre o verde e o cor de laranja quando diz que “a campanha deste ano não presta” e que “não há nada para comer”.
Nos dias anteriores, e nos próximos certamente, lá estará a fazer “água de caju” (o vinho é só depois de fermentado o sumo). Uma luta diária: “Se conseguir hoje para comer, tenho de começar logo a pensar no dia de amanha”.
“A castanha de caju custava por quilo 250 francos mas agora só estão a dar 200, não dá nada. As pessoas estão sentadas à espera, toda a gente está com medo de fazer esta campanha, não temos nada, só fome”, queixa-se, também ela sabendo que o golpe de Estado pode levar a que ninguém compre o caju da Guiné-Bissau.
“Não sei, não sei, pode ser comprado ou não. Vamos sentar e vamos esperar”, diz, agora já sem amassar o fruto.  Para já, e porque os filhos precisam de comer, vai armazenando o sumo para fazer “martel” ( vinho). Um bidão de 25 litros pode ser vendido, diz, até a 500 francos (setenta cêntimos), o preço de três pães e sobram 50 francos.
“O caju não é meu, o dinheiro é só o da água”, diz também Paulina Có, agora já ao fim da tarde depois da apanha, à beira da estrada de Prabis, também ela a esmagar o pedúnculo. Ela e outras mulheres, enquanto crianças, muitas, brincam à volta.
Por ser quase noite acende-se uma fogueira no chão e uma das mulheres põe uma frigideira velha ao lume com castanha de caju, acabada de apanhar. Em 10 minutos está o fruto pronto para descascar. E servir de jantar.
Não se fala de política ou de políticos, de golpes de Estado ou de militares. Nem dos 10 milhões de euros que o governo arrecadou em 2011 só em receitas alfandegárias. Nem do milhão e meio de toneladas de polpa (rica em vitamina C) que foi desperdiçada. Nem dos 333 francos que custou cada quilo vendido no ano passado. Nem dos 45 milhões de euros distribuídos pelo interior do país em 2010, graças à campanha do caju.
Nada se fala a não ser da fome que ameaça. E mesmo assim sempre com um sorriso grande, que só consegue ter quem está longe da “praça”.  Sorriso natural. Porque, como diz Augusta Djú ainda só estão na fase de preparação do vinho. “Agora é sumo ainda, mas se se põe no bidão fermenta”. E, garante, é saboroso. Quem o bebe bate palmas. E ri.
LUSA

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