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Sonho tanto com isto. Um dia vou ser eu.


http://www.seleccoes.pt/beijo-de-mulata

Hoje, quase com a especialidade de Pediatria terminada, tem o vício da solidariedade agarrado ao corpo.
 
Não sonhava com a Medicina desde o berço. Quando lhe faziam a pergunta sacramental respondia que queria ser cientista. Queria ser investigadora. Depois, quando entrou para medicina, ia ainda com dúvidas. «Eu era mesmo apaixonada pela ciência. Acho que a única coisa em que eu acreditava era na segunda lei da termodinâmica!» Hoje ri-se ao recordar esses desejos antigos: «Como é que eu podia achar que ia ser feliz dentro de um laboratório? Como?»

A pergunta faz tanto mais sentido quanto mais se desenrola o novelo da sua vida. Patrícia Lopes tem 32 anos e é médica. O gosto pela Medicina fez-se como se faz o caminho: caminhando. O desejo de ajudar os outros, porém, foi crescendo a uma velocidade maior, mais fervilhante. Por isso, no 5.° ano do curso, em 2003, Patrícia estava impaciente: «Sentia que já tinha estudado muito, e que ainda não tinha ajudado ninguém. Achava-me preparada para resolver coisas do dia a dia, queria muito fazer. Estava cansada da teoria.»

E, assim, falou com um amigo de infância da mãe, missionário em Moçambique, que lhe deu o contacto do padre Zé Maria, diretor da Casa do Gaiato no mesmo país. A chamada foi interrompida algumas vezes, porque não havia banda larga e a eletricidade caía de cinco em cinco minutos, mas o essencial foi dito e compreendido.

Do lado de lá da ligação, o padre Zé Maria respondeu exatamente o que ela queria ouvir: «Há cá muito para fazer! Venha, venha!» Nas férias de verão, Patrícia pegou numas poupanças e foi. A Casa do Gaiato ficava a 50 quilómetros de Maputo, na savana profunda. «Era um orfanato com 150 crianças, mas era muito mais que isso. Aquela missão extraordinária tinha criado escolas, um centro de saúde, um terreno agrícola que empregava 1200 pessoas, uma vacaria, criação de porcos. Eram 700 hectares de civilização criada do nada. Um trabalho impressionante.»

Patrícia não podia imaginar até que o padre Zé Maria falava a sério quando disse «há cá muito para fazer». Uma das irmãs tinha adoecido e estava no Brasil. Com ela, tinha ido a enfermeira. E, por isso, toda a saúde daquela novíssima civilização lhe caiu ao colo, sem aviso prévio: «Eu tinha 23 anos e achava que tinha ido para tomar conta de crianças, brincar com elas e assim. Não tinha tido qualquer contacto com a medicina tropical, e fiquei apavorada. Outra coisa: hoje eu sei que aquela comunidade era de uma organização incrível. Tinham água corrente, água quente, havia casas de banho, eletricidade! Luxos! Hoje, eu sei disso. Mas naquela altura, primeira vez em África, com 23 anos, eu só conseguia ver uma pobreza imensa.»

Nessa primeira missão em Moçambique, Patrícia tratou de tudo: malárias, tuberculoses, pneumonias, desidratações, partos. «O que me valeu foi que levei um livro, para estudar. E estudei até à inconsciência! Fartei-me de aprender.»

Um dia, foi chamada à enfermaria dos meninos. Havia um rapaz com malária, a sua febre não havia meio de baixar. «Acabámos por perceber que tinha tuberculose. Liguei-me muito a esse menino.» O mês terminou num abrir e fechar de olhos. Patrícia teve de voltar para Portugal, para o seu curso, para a sua vida. Veio impressionadíssima e com a certeza de que voltaria. Aquilo fazia-lhe todo o sentido. Um mês depois de ter voltado, estava a fazer o seu estágio de cirurgia, recebeu um telefonema a dizer que o menino com a febre que não baixava tinha sido transferido para Portugal e estava no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. «Porquê? O que é que aconteceu?», quis saber. Do outro lado, más notícias: a criança havia ficado com metade do corpo paralisada de um momento para o outro. Era urgente tentar salvá-la.

Afinal, o que ele tinha era um tumor no cérebro. Nuno Lobo Antunes deu-lhe 9 meses de vida. Patrícia ficou devastada e decidiu tomar conta dele. Ia visitá-lo todos os dias, sempre que podia. Nélson, 5 anos, órfão de mãe e pai, era a alegria da enfermaria. Animava todos os pais, dançava, cantava, era o que comia melhor.

Patrícia, que ainda não tinha escolhido a especialidade e que já tinha desejado escolher neurologia e oftalmologia, começou então a achar que pediatria era uma especialidade boa, bonita, gostosa. A sua afeição ao Nélson cresceu a olhos vistos. Ela era a sua mãe, ele era o seu filho. Mas Nélson sentia saudades de Moçambique, do padre Zé Maria, das irmãs, da missão. Dos burros, da terra, da liberdade. Quis voltar. E acabou por morrer lá. Para Patrícia foi um duro golpe. Nunca mais conseguiu voltar ao mesmo lugar.
 
Sabia que tinha de voltar a África, mas não queria regressar ao sítio onde tinha conhecido o «seu» menino. Falou de novo com o amigo da mãe, que lhe disse: «Se sobreviveste à Casa do Gaiato podes ir para outro lado...» Em 2004, já médica recém-licenciada, Patrícia Lopes partiu para uma missão em Iapala, a 200 quilómetros da cidade de Nampula. E aí, sim, percebeu que a Casa do Gaiato era uma espécie de «resort de cinco estrelas»: «Não havia eletricidade, nem água corrente, muito menos água quente... Mas pior do que isso foi entender a cultura e o modo como encaram a doença. Para eles não há vírus ou bactérias. Se aparece uma doença é porque alguém dessa família quebrou um tabu, uma tradição. Alguém fez alguma coisa de errado e está a ser punido.
 
É uma cultura muito difícil para um médico. Porque as pessoas mentem, escondem, preferem morrer. Vão primeiro ao curandeiro. Quando vão ao hospital já é em estado quase terminal.» Tudo porque as pessoas têm de ser enterradas onde viveram os seus antepassados. Caso contrário, o seu espírito nunca terá descanso e andará a vaguear, errante. A morte está muito presente, sempre presente.
 
«Morre-se com tanta facilidade que as pessoas têm muito medo de morrer, e acham que vão morrer. É de tal ordem que, se perguntamos por alguém, a resposta é: “Está viva!” Hoje, quando falo com as irmãs, até eu dou por mim a perguntar: “Então e fulana, está viva?” Porque é de facto assim. Hoje estão vivos, amanhã não se sabe.»

Um dia, estavam em Naheche, uma aldeia perdida na savana, onde tinham ido para a campanha de vacinação. Apareceu um miúdo de 15 anos, com uns gânglios descomunais. «Devia ter um linfoma. Fiquei muito preocupada e começámos logo a tratar de tudo para o transferir para o hospital de Maputo. É preciso muita organização e é um processo que demora tempo. Quinze dias depois, quando o voltei a ver, e antes de ser transferido, percebi que os gânglios estavam muito mais pequenos. Tinham reduzido para metade.
 
Explicaram-me que tinham ido ao curandeiro, que lhe tinha dado uma erva daninha que cresce por todo o lado, chamada beijo-de-mulata. Claro que não pude acreditar que aquilo o estava a ajudar. Ele acabou por ser transferido. Anos mais tarde, e apenas por acaso, descobri que a tal erva é de onde se extrai um agente de quimioterapia, a vincristina. É claro que só o chá de beijo-de-mulata não daria para o salvar. Mas também percebi que há realmente muito para aprender em África.»

A lição foi tão forte que, quando chegou a Portugal, Patrícia criou um blogue a que chamou, justamente, beijo de mulata (beijo-de-mulata.blogspot.com). E acabou de lançar um livro que, não tendo o mesmo nome, conta as suas aventuras em África, estas duas e as que se seguiram: A Missão – Diário de uma médica em Moçambique (editora Verso de Kapa). Como seria de prever, 100% dos direitos de autor deste livro revertem a favor da APARF (Associação Portuguesa de Amigos de Raoul Follereau), uma instituição particular de solidariedade social, sem fins lucrativos, que visa prestar assistência material, sanitária e moral às pessoas afetadas pela lepra.

Da segunda vez que foi, sentiu ainda mais pena de ter de voltar. Como um vício que a fosse atingindo cada vez mais. Foi por isso com alguma satisfação que soube que haveria um tempo de espera para saber em que especialidade entrara. Não pensou duas vezes. «Ai, há tempo de espera? Então vou para Moçambique.» Pediu uma licença sem vencimento e lá foi ela outra vez. «Dessa vez fui por três meses. Mais um banho de cultura distinta. É tudo tão diferente...», explica, num encantamento indisfarçável. «50% da população tem menos de 18 anos. Porque há esta noção de que ter crianças é uma riqueza. E a gente pergunta: “Tem quantos filhos?” E ouve, num tom de lamento: “Só tenho quatro, irmã...”

Explicar-lhes que mais vale terem dois e poderem dar-lhes de comer não faz qualquer sentido, mesmo para os mais instruídos. Seria poético, se não fosse trágico.»

Patrícia voltou para Iapala, nesse ano de 2008, e também esteve na Zambézia. Essa viagem já foi financiada pela APARF: «A lepra é uma doença terrível, porque é muito estigmatizante. Se uma criança aparece com lepra, a sua vida acabou. Ela é escondida de todos, porque é uma vergonha para a família. Na Zambézia há muita lepra. Aliás, se eu achava que Iapala era África profunda, voltei a ter um choque quando cheguei à Zambézia. É ainda mais pobre, ainda menos fértil, há muito mais lepra e sida. E ainda mais tabus e ritos.» Foi em Moçambique que ficou a saber que tinha entrado para Pediatria.

Voltou para Portugal para fazer a especialidade, mas ainda voltou em 2009 e em 2010. Entretanto, na Páscoa deste ano, voltou a cair-lhe um bebé ao colo. «Sempre achei que iria voltar a cair-me uma criança nos braços, tal como acontecera com o Nélson.
As minhas amigas riam-se. Mas eu sentia...» E tinha razão. Patrícia estava a trabalhar na Estefânia quando foi chamada a uma enfermaria de doentes crónicos. Foi então que os seus olhos bateram nos olhos de um bebé. «Então e quem é este menino tão lindo?» A enfermeira explicou que a criança havia sido abandonada pela mãe e que tinha graves problemas de saúde, tendo já sido operada oito vezes, nos doze atribulados meses que tinha de vida. «Dei imediatamente por mim a pensar: Será este?» Como se lhe lesse o pensamento, a enfermeira desabafou: «É uma pena, tão lindo, mas, com estes problemas de saúde, não vai ter ninguém que o queira.» Patrícia sentiu um baque no peito: «Pronto, é mesmo este.»

A ideia não a largou mais. Chegou a casa, perguntou à mãe o que achava se ela adotasse aquela criança. A mãe enterneceu-se, conhecedora do coração grande da filha, mas temeu por ela: «Tens a certeza? Ainda não acabaste a especialidade, és solteira... vais assumir tanta responsabilidade assim de repente?» Pois. Era algo em que teria de pensar. Mas a imagem do bebé não a largava.
 
Começou a ir mais vezes à enfermaria vê-lo. Falou com a melhor amiga, que achou a ideia brilhante mas que teve muito medo da sua concretização. Na verdade, talvez não tivesse sido necessário falar com ninguém. A sua decisão estava tomada desde o momento em que os seus olhos se cruzaram com os olhos dele. Meteu os papéis, provou por A mais B que era uma criança que ninguém iria adotar, e a 13 de agosto veio a autorização. O bebé, hoje com 17 meses, foi para sua casa no dia 11 de setembro.

Quando chegou, não falava, não caminhava, estava apático e tristonho, tinha um atraso geral de desenvolvimento. Ninguém diria. Hoje fala, anda, parece vender saúde e sorri com a cara toda, numa felicidade conquistada a ferros e oferecida, de bandeja, pela sua mãe novinha em folha. O modo como se atira para os braços dela diz muito. Diz tudo. E a evolução que teve, num mês, é a prova provada de que a medicina não explica tudo. E que o amor tem, de facto, razões que a razão desconhece.

Patrícia Lopes, beijo-de-mulata, médica, quase-pediatra (a especialidade termina em fevereiro de 2013), voluntária, mãe, escritora. Mulher de coração enorme e sorriso a condizer. Tem África no coração e sabe que vai voltar mais vezes para fazer omeletes sem ovos e virar-se do avesso para conseguir salvar nem que seja uma só vida. Não sabe bem como será, agora que tem um filho, mas conta levá-lo consigo e poder, assim, mostrar-lhe desde tenra idade que há mundos para lá do nosso mundo, mas que cabem e devem caber dentro de nós, e nós dentro deles. É dessa interseção que fala o seu livro. É desse amor e dádiva de que ela é feita.

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