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A blasfémia de Moisés


Então Moisés voltou-se para Deus e disse: “Senhor, porque maltrataste este povo? Porque me enviaste? Desde que vim ter com o faraó para falar em teu nome, ele maltratou este povo, e Tu não libertaste de modo nenhum o teu povo”. Ex 5, 22-23

A fé implica muita seriedade. Esta minha reflexão não tem que ver com uma seriedade moral ou integridade de uma perfeição, ou pureza, inalcansável, mas simplesmente com a capacidade da total possibilidade de verdade e transparência diante de Deus. A fé é exigente na medida em que obriga a questionar(-me), buscando uma renovação do amor, querer e interesse pessoais. As dúvidas de fé, quando vividas com maturidade, podem ser portas para o aprofundar da mesma. 

Há dias, na aula de “Sapienciais”, enquanto introduzia o O Livro de Job, o professor  fez referência à “blasfémia de Moisés”. Moisés é chamado por Deus, dizendo-lhe que guiará em Seu nome a libertação do Povo de Israel do Egipto. Moisés dirige-se ao Faraó pedindo-lhe três dias para todo o Povo ir adorar a Deus no deserto. Além de um não rotundo, o Faraó intensifica o trabalho do Povo escravizado, numa injustiça tremenda... obriga-os a fabricar a mesma quantidade de tijolos com menos material, açoitando-os enquanto trabalhavam. Moisés, perante tanta injustiça, reza de forma blasfema, culpando a Deus pelo maltrato do Povo e acusando-o de não cumprir o que prometeu: a libertação do Povo. 
Que grandeza a de Moisés! 
Quando se lê a sua vocação, o quanto se opõe a ela e as voltas que Deus dá para lhe mostrar que não tem de ser perfeito, apenas ser quem é e confiar n’Ele para cumpri-la, este sentimento de grandeza torna-se ainda mais denso. Não é grande porque blasfemou. Não é grande porque se mostra forte contra Deus. A sua grandeza reveste-se na fragilidade de não aguentar tanta injustiça e, perante a sua impotência, atreve-se a gritar a e contra Deus. Não se refugia no medo em tocar o todo-o-poderoso, pondo em causa os seus desígnios. Nele habita a dúvida, a inquietação, “afinal Deus não salva”, e não tem problemas em expressar a sua  revolta. Podia ter seguido três caminhos: calar e ir-se embora; gritar e ir-se embora; gritar e, ainda assim na dúvida, ficar. Sabemos que optou pela terceira. 
Não me parece que a espiritualidade seja desencarnada da vida, das suas realidades psicológica, sociológica, filosófica e biológica. São aqueles que são mais próximos em relação que acabam por sofrer mais com o desespero ou tristeza e até com o mau-humor e “resmunguice”. São aqueles que estão mais próximos que sabem que esse grito existencial, vindo das mais profundas entranhas, pode significar precisamente o contrário da aparente acusação. O medo, a fragilidade, a impotência, não devem ser os controladores da relação, mas, sim, a verdade, a transparência e seriedade da mesma... sobretudo com Deus.
 Não caíram raios sobre Moisés, eliminando-o da face da terra. Moisés é confirmado por Deus como o mediador da libertação do Povo, dando um novo passo na relação com Ele. Atrevo-me a dizer que é preciso fé para blasfemar com convicção... quando se o faz sem medo de escutar a resposta que desinstala: “Moisés, porque clamas por mim? Fala aos filhos de Israel e manda-os partir. E tu, levanta a tua vara e estende a mão sobre o mar e divide-o, e que os filhos de Israel entrem pelo meio do mar, por terra seca” Ex 14, 15-16

E o impossível torna-se possível.

http://oinsecto.blogspot.com.es/2012/02/blasfemia-de-moises.html

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