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Todo o silêncio

De nome inteiro, o escritor está sentado à mesa. Quem terá tratado do arranjo de flores que tem à sua frente? O microfone funciona.

Enquanto apresento o meu livro em bibliotecas e livrarias, acabo quase sempre por te referir. Nesses momentos, és personagem de episódios, autor de frases, portador de lições que ainda fazem sentido. Muito raramente, como se me espreitasses através de uma frincha, o teu olhar pode atravessar essas palavras que escolho para te mencionar. Eras chuva de muitos dias seguidos, essas palavras são uma gota.

Não é possível saber o que entendem as pessoas que me olham. Posso imaginar o que quiser a partir da sua atenção, escolho a melhor possibilidade, a mais benévola. Leio algumas páginas do livro em voz alta, exactamente como se estivesse a descobri-las.

O escritor está disponível para autografar os seus livros. Por favor, formem a fila nesta direcção. A minha caligrafia, embaraçosa como a minha voz gravada em vídeos antigos de festas de anos. De cada vez que escrevo o meu nome, o teu nome vai sobreposto ao meu. Da mesma maneira, lá no cemitério, no mármore, o meu nome está sobreposto ao teu.

Um homem de quarenta anos deitado sobre uma cama de hotel, iluminado pela televisão ligada. Com esta idade, mais do que nunca, distingo-te em mim. Entrava no teu quarto à noite, vias qualquer coisa na pequena televisão a preto e branco, e deitava-me ao teu lado. A minha pele tem a mesma cor da tua. Sou capaz de comparar as minhas mãos com as tuas. Conto o tempo que me falta para ter a idade que tinhas quando te perdi. Faço contas às idades que os meus filhos terão. Tento rejeitar esses pensamentos. Não quero, esse tempo é demasiado cedo para morrer, mas, como também sabes, importa pouco aquilo que queremos.

Amanhã, o André faz dez anos, mas tu não chegaste a conhecer o André. Às vezes, distingo-lhe traços teus, maneiras. Se for real e possível, se os meus olhos não estiverem deturpados pelo que quero ver, fui eu que transportei esses pequenos gestos. Levei-os talvez naquilo que faço todos os dias, nas minhas próprias maneiras. Como serias tu com dez anos? O André já ouviu falar muito de ti. Contei-lhe histórias que não chegam para que te conheça.

Aquele gajo que aparece na televisão sentou-se no restaurante e escolheu o prato do dia. Não vai querer as entradas, pois não? Juntos, pousámos os cotovelos em toalhas de papel como esta. Essas eram horas boas. O passado ficou com todas as conversas que tivemos à espera que chegasse a comida ou, depois, diante de nódoas de gordura e migalhas de pão. Agora, consigo recordar-nos em restaurantes como este, mas não temos som, não consigo reconstruir nenhuma das conversas que tivemos. Talvez falássemos de temas muito ligados à véspera desses dias distantes, ou talvez a minha memória tenha deixado de guardar essa informação, precisou do espaço para qualquer outro assunto.

Já depois da conta, o senhor do restaurante deseja-me sorte para os livros, e aponta para a televisão onde me viu, presa à parede. Agradeço e, nesse momento, entendo de repente a simpatia pouco habitual, o sorriso a despropósito.

Sim, pai, às vezes, vou à televisão falar dos meus livros.

É difícil explicar. Haveria de surpreender-se bastante com aquilo que aconteceu. Nunca apareci na pequena televisão a preto e branco que tinha no quarto e, com toda a sua capacidade de idealizar o futuro, haveria de ficar incrédulo se alguém lhe contasse. O meu pai não tinha forma de imaginar que, um dia, com este caminho feito, eu seria um escritor a dar autógrafos.

Para o meu pai, serei sempre um rapaz de futuro incerto, com a carta de condução acabada de tirar, a estudar para ser professor. Quando pousava as pálpebras sobre os olhos, o sofrimento, sei que uma das suas preocupações era: o que irá ser deste rapaz? Ele próprio, muitas vezes, dizia esta frase. Dentro de mim, sou capaz de ouvir a sua voz a dizê-la.

Agora, nada pode mudar esse facto. Mesmo que passe o resto da minha vida a escrever livros, mesmo que sejam lidos por milhares e milhares de rostos atentos, mesmo que o meu nome seja repetido todos os dias em bibliotecas e livrarias. Para o meu pai, nunca serei escritor.

José Luís Peixoto, in revista Visão, 23 de outubro de 2014

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