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Importa saber estar só
Margarida Vaqueiro Lopes
15 Março 2018
https://pontosj.pt/opiniao/importa-saber-estar-so/


1.

Em Portugal, são poucos aqueles que dizem sentir-se sós – um estudo [1] realizado pelo Observatório da Sociedade Portuguesa da Universidade Católica de Lisboa mostrava que, no final de 2016, mais de 70% dos inquiridos não indicava sentir-se só. Os resultados têm sido consistentes ao longo dos anos, embora a amostra reduzida (menos de mil participantes) leve a algumas dúvidas. Por outro lado, o último Inquérito Nacional de Saúde, feito pelo INE em colaboração com o Instituto de Saúde Doutor Ricardo Jorge, e citado no jornal Público, dava conta de que 25,4% da população residente com idade acima dos 15 anos tinha, em 2014, sintomas de depressão. E se é certo que esta última nem sempre é resultado da solidão, a verdade é que há indícios de que essa é, não poucas vezes, uma das suas causas. Há mesmo quem lhe chame “a doença da solidão”.

Importa, então, esclarecer o que é e quem a sente. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, a solidão não ataca somente os mais idosos que, por razões de ordem natural, vão ficando cada vez mais sós: os filhos saem de casa, os netos crescem, a mobilidade vai-se reduzindo, os amigos morrem, os companheiros partem ou muitas vezes são a única companhia. Para esta solidão, dos séniores, há respostas sociais – insuficientes, tantas vezes, é certo – e há causas identificadas e soluções que, se não faltar vontade política e social, podem avançar.

Há uma outra solidão, que tenho sentido cada vez mais presente entre jovens e adultos. Uma solidão escondida, muitas vezes não diagnosticada, oculta atrás de ecrãs, de redes sociais, de festas, de uma vida que nunca pára entre telefonemas, whatsapp, mensagens, mensagens de Facebook, fotografias de Instagram, instastories, snapchats, tweets, emails… Quantos, atrás de uma vida alegadamente tão agitada e corrida, não passam dias e dias sozinhos, sem alguém com quem conversar frente-a-frente, sem a candura de um olhar e o calor de um abraço. Sem a honestidade da palavra falada e a entrega de um toque, de um beijinho, de um sorriso. Quantas crianças, quantos jovens, quantos adultos não se sentem absolutamente sós no meio deste frenesi exterior que pouco espaço deixa para alguma quietude interior? Quantas pessoas têm cada vez mais dificuldade em socializar quando se encontram sem um ecrã que as proteja? – basta fazer o exercício no comboio, num autocarro, num supermercado: quantas pessoas olham nos olhos das outras, observam o mundo, verdadeiramente vêem quem está ao seu lado? Quantas cumprimentam as pessoas com quem se cruzam, quantas sequer percebem que há, ao seu lado, pessoas que não estão a um ecrã e tantos quilómetros de distância e que, tantas vezes, só precisam que alguém veja que ali estão? Como é possível que sejamos cada vez menos presentes na vida uns dos outros enquanto tentamos ser cada vez mais presentes nas redes, estando em todo o lugar sem estar, verdadeiramente em lugar algum?

2.

Esta reflexão levou-me no outro dia a um segundo ponto: o da necessidade da solidão. Ou melhor, o da necessidade de aprendermos a estar sós para que possamos não nos sentir sós.

Tenho a profunda convicção de que a solidão é necessária. Enquanto meio e jamais enquanto fim em si mesma, entenda-se, mas é necessária. É nela que nos encontramos e é nesses encontros connosco que nos conseguimos conhecer, definir, analisar, avaliar. São esses momentos de solidão que nos fazem ficar de frente com o que realmente somos, com os medos que nos assolam, com as nossas prioridades e preocupações. Com as alegrias e interesses, os pensamentos de que nos envergonhamos ou aqueles de que nos orgulhamos. A solidão, enquanto meio, enquanto estado passageiro, é necessária e é benéfica. É ela que nos ensina a não ter medo dos nossos demónios, porque é nela que os conseguimos conhecer e dominar antes que sejam eles a dominar-nos. É por isso que ela é tão importante na construção da nossa vida: porque só dominando a nossa solidão, o nosso estado de ‘estar só’, conseguimos não nos sentir sós nos momentos mais escuros que atravessamos.

Em entrevista à Visão [2], o pediatra Mário Cordeiro dizia há uns tempos que “a geração de jovens de que falo no livro [que apresentava na ocasião] nasceu e cresceu com esta ânsia de comunicação e de estar presente, que muitas vezes funde os fusíveis às pessoas, porque faz com que deixemos de saber conviver com a solidão, e isso é indispensável”. E justifica: “A realidade ser tão voraz leva a doenças físicas, ao ataque à nossa imunidade […] Se não tivermos cuidado, deixamo-nos massacrar, e isso vai levar à falta de espaços privados, nossos”.

Também Jesus procurou, várias vezes, estar só. Homem do mundo, das pessoas, Jesus procurava repetidamente os momentos a sós para orar, para pensar, para se encontrar consigo – imagino eu. As passagens, no Novo Testamento, sucedem-se: “Assim que mandou o povo embora, subiu sozinho a um monte para orar. Ao chegar da noite, lá estava Ele, só” [Mt 14, 23]. Noutra ocasião, conta-nos o evangelista Marcos que “de madrugada, em meio a escuridão, Jesus levantou-se, saiu da casa e retirou-se para um lugar deserto, onde ficou a orar” [Mc 1, 35]. Ou no evangelho segundo São João: “Percebendo, então, Jesus, que estavam prestes a vir e levá-lo à força para o proclamarem rei, retirou-se novamente, sozinho, para o monte” [Jo 6, 15].

Para um encontro íntimo com Deus, tal como para um encontro íntimo connosco, nada se substitui ao silêncio, à tranqulidade e à serenidade da solidão. Uma solidão desejada, uma solidão de coração aberto, uma solidão de aprendizagem, de entrega e consciência da nossa pequenez. Só nela nos conseguimos ouvir e ouvi-Lo. Daí, também, que assuste tanto a ideia de a enfrentarmos: seremos confrontados com aquilo que temos que resolver, com respostas que eventualmente não queremos ouvir, com questões que não queremos debater. Mas, repito: se não procurarmos esses momentos a sós – regressos a casa em silêncio, o banho matinal, um momento na cama antes de dormir, uma hora de desporto sem música… – corremos o risco de essa solidão um dia chegar mais forte do nunca, e nos fazer parte dela sem que consigamos controlar-lhe a força. E digo-vos, com a [pouca] autoridade de quem já o experienciou: há poucas coisas mais angustiantes na vida do que sentirmo-nos permanentemente sós, mesmo que todo o mundo grite que nos quer acompanhar.

Não tenhamos medo de estar sós.



[1] https://www.clsbe.lisboa.ucp. pt/pt-pt/estudo-da-sociedade- portuguesa-novembro-2016

[2]http://visao.sapo.pt/ actualidade/sociedade/2016-12- 19-Mario-Cordeiro-O- narcisismo-e-a-grande-doenca- social-de-hoje-e-ha-muita- gente-que-nao-o-consegue- ultrapassar

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