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Um desejo de nada

Fui onze vezes ao deserto do Sahara. Nos últimos anos, tenho ido sempre, pelo menos uma vez por ano, assim como outros vão a Fátima ou outros a Paris. A devoção tornou-se assim uma espécie de obsessão, aos olhos dos amigos ou dos estranhos: perguntam-me frequentemente o que é que eu lá procuro e o que é que encontro. E a esta pergunta, tão simples e tão vasta, costumo dar uma das minhas respostas preferidas: não procuro nada e não se encontra o que se procura, mas o que se encontra. De vez em quando, forçado a explicar-me melhor, falo da paisagem inicial e despojada do deserto, ou da viagem interior que ali acompanha a outra viagem. Mas não passam de lugares-comuns, próprios de quem não sabe a resposta ou, no subconsciente, não deseja partilhá-la com os outros. 
O que é que se procura num deserto? Por definição, nada. O deserto é a ausência de tudo. É esse, afinal, o segredo desta estranha atracção: a ausência de tudo equivale ao princípio de tudo, como uma página em branco. Por isso, as minhas recordações mais marcantes do Sahara estão ligadas sempre a coisas incrivelmente simples: um copo de água gelado, oferecido por um médico da Frente Polisário, num hospital de campanha do Sahara Ocidental, com uma temperatura de 60º centígrados lá fora; uma noite deitado numa duna de areia, no extremo sul argelino, entre um silêncio absoluto, a ver passar os satélites de telecomunicações no céu, a olho nu; ou outra fantástica noite no sul de Marrocos, numa tenda berbere de um abrigo para viajantes, debaixo de uma tempestade de areia desencadeada subitamente, dormindo e acordando ao som do vento rugindo em fúria descontrolada e coberto de areia da cabeça aos pés. 
Não se encontra o que se procura, mas o que se encontra. Encontrei uma vez uma víbora preta, debaixo de um tanque marroquino destruído na guerra com a Polisário; encontrei um escorpião branco da areia, sinistro e pequeno assassino, a um metro das minhas costas, quando me preparava para dormir num velho forte abandonado; encontrei um antílope que corria ao longe, no meio da extensão sem fim das dunas do Grande Erg Ocidental, e uma noite encontrei um pássaro enorme, que parecia um faisão e que, saído de parte alguma, se veio esborrachar contra os faróis do jipe, oferecendo-se em inesperado jantar. E encontrei gente que só ali se encontra - o Ahmed, o Sidi, o Mohamed «Pás de Problème», o Ali e outros, europeus como eu e, tal como eu, à procura de coisa alguma. E encontrei duas mulheres berberes com um burro, num poço, no meio do nada. A mais  nova era muito bonita e tinha uma criança ao colo. Dei-lhe os habituais presentes e perguntei-lhe por gestos se a podia fotografar. 
Ela fez um sorriso de pura sedução, abriu a roupa, tirou o peito para fora e começou a fingir que dava de mamar à criança, que não tinha fome nenhuma: fiz-lhe uma verdadeira fotografia erótica.
Mas o deserto raras vezes é aquela coisa sempre poética e deslumbrante do filme do Bertolucci, com dunas cor-de-rosa e vermelhas ao pôr-do-sol. A maior parte das vezes, longe das caravanas de camelos para os turistas da «photo opportunity», é um terreno áspero, duro, feito de calhaus e terra escurecida, sem árvores, sem dunas, sem pássaros, sem água nem rios, sem nenhum sinal de vida - como uma Lua debaixo do Sol. A progressão lenta e massacrante, a paisagem é monótona e triste, as jornadas são esgotantes e vazias de acontecimentos: tudo nos faz desesperar por um acampamento ao fim do dia, dois litros de água para limpar o pó da cara e da cabeça, uma lareira, uma sopa quente, uma conversa que engane as saudades de casa. 
Porquê, então, este desejo veemente de deserto, esta vontade de nada, de vazio absoluto, esta viagem ao mais fundo de nós mesmos - lá, onde não resta sombra de arrogância, do orgulho, e da sabedoria que julgamos ter? Talvez (vou enfim arriscar uma resposta...) porque ali estamos a sós com o Absoluto, ali, se os Deuses existem, é o mais próximo deles que podemos estar, porque ali reside, mesmo que jamais o decifremos, a chave para o eterno enigma da Criação. É ali que começa a vida, é o nosso útero, o princípio de todas as coisas. Só então ficamos a saber que tudo o resto são circunstâncias. 

Miguel Sousa Tavares
Não te deixarei morrer, David Crockett

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