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O cancro, bruto e duro

A vizinha admirada porque lhe anuncio dois amáveis cancros. Fazer o quê? Dizer o quê? Lamuriar, chorar, gesticular, tapar a cara, esconder os olhos, levar as mãos à cabeça? Não. Nada disso. Ter a certeza da fé, a consciência dos privilégios, agradecer. Ou melhor, dar graças a Deus.
Olhando o que se passa à minha volta no hospital, a maior parte das pessoas doentes não tem trânsito, ou seja, não consegue um espaço de expressão, não sabe como comunicar, não tem condições para se mover, não tem dinheiro para pagar um taxi, um conforto, uma comodidade. Quase todos que ali estão sentados têm alguém que os acompanhe, mas muitos estão sozinhos. Tantos parecem tão fracos, tão doentes. 
A face exposta da doença desmonta os poderes dos homens e a suposta feminilidade das mulheres. Os casais. As famílias. Adivinham-se as tensões antigas, assiste-se a um sentimento de trégua ou de paz, há um cuidado de trazer uma água, alguma coisa leve para comer, há o cuidado de segurar um saco menos leve. Há gente encostada a um ombro, adormecido o cansaço.
E eu privilegiada me sinto, porque tenho Deus e nunca estou só, mesmo sozinha. Há os irmãos, os filhos, os netos. Os amigos e as amigas. Sou povoada e agradeço por isso.

passageiro clandestino,
leonor xavier

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