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A que distância deixamos nós o coração?

Num mundo à procura de si próprio talvez a maior fragilidade seja a de não perceber ou querer perceber fragilidade alguma.

“A minha aldeia tinha árvores grandes. Chorei muito quando a queimaram”. Borrões. Letra incerta e erros. A história real do Pedro – que será feito dele ? – é igual a de tantos outros meninos moçambicanos, tantos outros meninos africanos. Homens armados assaltaram a povoação onde vivia. Queimaram, mataram. E o Pedro viu a mãe, o pai, os tios, os vizinhos ser degolada. O Pedro tinha 12 anos estava internado no departamento de próteses do hospital de Maputo, dirigido por holandeses.

Campo de Mogulama. Zambézia. Uma clareira de terra vermelha com tendas. Azuis para os moribundos. Brancas para os refugiados. Aqui os bebés não choram e as crianças não riem. As que foram libertadas na floresta têm olhos de tristeza infinita. Os números são um desalento. Fome (37 por cento da população), subnutrição (50 por cento das crianças), esperança de vida 45 anos, mutilações (de mãos, narizes, lábios, seios e sexos), raptos, violações (de meninas e meninos), amputações por minas, crianças soldado o mais cruel dos combatentes.

Na berma das estradas esqueletos de camionetas e carrinhas queimadas. Cheiro a borracha calcinada e a carne em putrefacção. Vermes saem e entram em vísceras expostas. A moldura da guerra. A baleia a definhar na praia da Terra Sonâmbula de Mia Couto.

Em 1990, quantificando horrores, o Índice de Sofrimento Humano, colocava Moçambique no primeiro lugar e Angola no segundo. Em 1990 quantificando horrores Moçambique era o país mais pobre do mundo. A tão ansiada paz chegaria a 4 de Outubro de 1992.

Hoje poucos os não africanos que se lembram ou têm presente todo o sofrimento que se viveu em Moçambique e poucos são os que têm presente como a paz é algo tão frágil.

Escolhi falar de Moçambique no início da década de noventa porque o país entrou na minha vida um bocadinho à maneira de Casablanca , “of all the gin joints in all the towns in all the world, she walks into mine” (de todos os bares, de todas as cidades do mundo, ela entra no meu) na frase de Bogart que resume o filme. Entrou para nunca mais sair. Nem o continente africano. Com Moçambique aprendi que a fome também fala português e aprendi uma outra coisa a perguntar-me sempre: a que distância quero deixar o coração.

Estou a poucos dias de partir para o Quénia. Até ao final do ano vou estar a trabalhar em zonas conhecidas como “cinturas de fragmentação” no âmbito de um programa de Peace Support e combate ao discurso de ódio.

O trabalho está a ser desenvolvido no Quénia e no Uganda, nas zonas fronteiriças com a Somália, o Sudão do Sul, República Democrática do Congo e Ruanda. Zonas particularmente complexas e voláteis, marcadas por conflitos militares, pelo terrorismo islâmico e cristão, por um catálogo infindo de atrocidades e dificuldades.

É nestes terrenos que os media e em particular a rádio têm um papel fulcral, quer na resolução de conflito, quer nos processos de pacificação. Nos campos de refugiados o trabalho será, entre outros, ugandeses, somalis, sudaneses do Sul e quenianos. Será um esforço enorme e duradouro, mas são estas as intervenções que fazem a diferença e são elas que põem tudo em proporção. Dizia-me um jornalista ugandês: ”sempre fiz peças sobre refugiados, mas eles para mim eram números. Agora que conheço alguns penso que podia ser eu a estar ali.".

Como é que alguém se prepara para uma missão destas? Lendo muito, ouvindo muito, pondo paradigmas europeus de lado, esquecendo o que é conforto básico e fazendo uso do músculo que temos dentro do peito.

Prometi à minha filha mais nova ter cuidado e prometi-lhe também enquanto tiver forças e para além delas tentar colocar no mapa os invisíveis, os sem voz. Prometi à mais velha morder a língua de vez em quando (não será fácil). E prometi à minha neta (não digam nada à mãe dela) que um dia vamos saltar as duas de pára-quedas.

A herança que lhes quero deixar? Que saibam manter o coração à distância certa, a reconhecer a fragilidade e o pedido de ajuda do Outro.

Helena Ferro de Gouveia

https://camalees.wordpress.com/2016/08/15/a-que-distancia-deixamos-nos-o-coracao/

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