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Querida Afilhada,

Agora que o estetoscópio vai ganhando um lugar só dele nos teus dias e que a tua bata vai significar um pouquinho mais do que até então, escrevo-te e desejo-te em dobro tudo aquilo que de mais nobre, mais humano e de mais especial já vivi no Hospital. No nosso Hospital de Santo António. Tão nosso e por nós tão amado, porque lá crescemos, porque lá nos construímos e reconstruímos vezes sem conta, sempre com a sensação de que sabemos tão pouco junto do leito de uma velhinha querida que nos quer falar da solidão e da fome e não da doença, ou daqueles que não falam e dizem (quase) tudo, ou então junto daqueles que sorriem no fim e nos dizem “Felicidades Menina”, enquanto nos agarram na mão e terminam com um “Vai ser uma grande Doutora”. E quase temos medo de acreditar…

Este caderno serve para apontares as tantas notas que vais tirar enquanto colhes história…mas lembra-te… por mais que escrevas, a história das pessoas vem-lhes no olhar, nas rugas que não são culpa da idade, na cabeceira vazia ou então na cabeceira que, como altar sagrado, guarda a fotografia do filho pequenote que está à espera da mamã em casa. Lembra-te que a doença é “só” mais uma daquelas coisas más que as pessoas “têm”, mas...lembra-te..., mesmo que esqueças tudo o resto, que as pessoas aos olhos, humanos e humildes, de um médico não “têm”, “são”. Com toda a sua dignidade. Com tudo o que não nos contam. Com tudo o que gritam e mesmo assim não ouvimos.

Esta caneta serve para chegares ao fim da cada história, história de vida, daquele doente, com aquele nome, com aquele rosto, e escreveres aquilo que desejo que sintas enquanto te despedes. Se nesse momento, mesmo que não lhes digas (ao avô que podia ser teu, ao filhote que queres ter um dia…), lhes sussurrares no aí por dentro, onde o coração é feito de Deus, “Eu vim por ti”, serás e descobrir-te-ás um pouquinho mais médica do que eras antes de chegares. “Eu vim por ti” escrito com esta caneta, por uma vez que seja, vale o céu e algumas estrelinhas e até a lua. 


Sê luz na vida daqueles que encontrares

Dá Vida a quem vier ao teu encontro

E a Lua será tua



Da tua madrinha, que tanto te ama, 
Patrícia

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