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Como Ela morre

‘Como Ela Morre’: Um manual de sobrevivência
http://www.comunidadeculturaearte.com/como-ela-morre-um-manual-de-sobrevivencia/

22 MARÇO, 2017 - DIOGO SOTTOMAYOR





“Todas as famílias felizes são parecidas, cada família infeliz é-o à sua maneira”
Liev Tolstói, em Anna Karénina

Anna Karénina, de Lev Tolstói, é uma caixa de pandora; abri-la liberta essências e aromas que alteram a forma como vemos o mundo e as relações humanas.

A proposta de “Como Ela Morre” é ver o efeito dessas páginas em dois casais: um casal português, em 1967, altura em que ela começa a ler o romance, e um casal flamengo, em Antuérpia, em 2017, quando ele lê o romance. Estas páginas parecem encerrar em si não personagens mas pessoas reais, com as quais convivemos ao longo da obra e ao longo da vida. A marca que nos deixa é indelével e inegável. Eles passam a ser coisas palpáveis através dos nossos sentidos.

Esta produção, que nasce da colaboração entre o Teatro Nacional D.ª Maria II e os “tg STAN” – o mesmo é dizer “toneelspelersgezelschap” (companhia de actores) “Stop Thinking About Names” – segue um processo criativo comum ao modelo da companhia belga cujo modus operandi, segundo o site oficial da mesma, é:


“Não decorar linhas de texto, sem ensaios, sem nenhum líder aparente: apenas 4 estudantes de temperamento complicado, sentados à volta de uma mesa, a falar muito, a fumar e a ler textos. Isto soa a um ponto de partida improvável para uma das companhias de teatro de maior sucesso na Bélgica. Mas estas são as regras que os tg STAN, uma companhia de teatro baseada em Antuérpia que iniciou a sua atividade há 20 anos, criaram para si próprios”.

Esta colaboração levou a bom porto esta peça, que nos coloca perante espelhos para que pensemos no plural. Quantas vezes quisemos terminar algo que não tinha futuro e faltou a coragem? Quantas vezes nos sentimos perdidos e um livro foi a nossa salvação? O que nos fazem os livros? O que nos fizeram os livros que já lemos numa outra altura da nossa vida?

A morte de Anna é multifactorial, tem várias facetas. Ela própria “morre” várias vezes ao longo da obra. Nas palavras de Pedro Gil: “E o título do espectáculo vem daí: é uma tentativa de (…) compreender porque é que ela o faz através do como. E o ‘como’ é a questão da arte”.

O cenário é composto por uma cozinha na direita alta de cena. O restante é espaço de cena onde tudo é transformado, desde uma estação de comboios a um café, uma cena romântica à neve, tudo até à despedida sombria da vida. A sonoplastia auxilia-nos a perceber melhor o ambiente e, de forma intrincada, vai tecendo diferentes climas ao longo da peça. A forma como os adereços se vão metamorfoseando ao longo do espectáculo, como é habitual nas encenações de Tiago Rodrigues, não é aqui excepção. Não vemos apenas um banco. Vemos uma estação de comboios. Estação essa que muda e com ela mudam as personagens.

Existem várias línguas faladas em cena, o português, o neerlandês e o francês como língua comum entre todos (no romance o francês também é usado como segunda língua). A questão da linguagem é como um diamante em bruto que pode ser trabalhado de várias formas. Os casais discutem na língua mãe e as paixões adjacentes acontecem em francês. Seremos pessoas diferentes quando utilizamos uma língua que não é nossa?

Frank Vercruyssen ensina um poema em francês a Isabel Abreu. Faria diferença se fosse em japonês? Colocamos a nossa avaliação na compreensão ou no carinho? A linguagem muda a forma como nos comportamos?

A ruptura é uma constante discussão. Ouvimos relatos de relações infelizes. Desabafos íntimos e sentidos palavra por palavra. Quando alguém de quem gostamos muito se vai afogar e precisa de nós, o que fazer? E se para o salvarmos também temos de nos afogar? Ficar na margem e ver o outro afundar será uma decisão egoísta? Como devemos procurar a felicidade?

Este livro, mais do que um romance, é um manual de sobrevivência. Questiona-se a manutenção de relações sem paixão, sem fogo, sem carinho. Questiona-se o que devemos fazer. Questiona-se o que é ser feliz. Estas são inquietações levantadas por Anna e pelos dois casais em cena, cada um na sua respectiva época.

Uns preferem ir embora e descobrir que estão errados… E nós?


Como ela morre. E se não houver famílias felizes?
https://sol.sapo.pt/artigo/552721/como-ela-morre-e-se-nao-houver-familias-felizes-

Cláudia Sobral
9 de Março

"Les familles heureuses se ressemblent toutes; les familles malheureuses sont malheureuses chacune à leur façon”, repete Isabel Abreu numa personagem a quem não conhecemos nome. Talvez seja o seu, Isabel, casada e com um filho em Lisboa em 1967, a aprender francês com um livro de Tolstoi para perceber que não sabe “como é que as pessoas conseguem viver normalmente”. Cinquenta anos depois, em Antuérpia, é o belga Frank Vercruyssen a tirar o peso ao mesmo livro, “Anna Karenina”, nesta coprodução do Teatro Nacional D. Maria II com a companhia belga tg STAN, que se estreia esta noite no Teatro Nacional, em Lisboa.

A história de dois casais em crise, um português (Isabel Abreu e Pedro Gil), outro belga (Jolente de Keersmaeker e Frank Vercruyssen) com “Anna Karenina” pelo meio, numa peça que, já se percebeu, não é uma adaptação da obra de Tolstoi mas de onde ela não desaparece nunca. O que há, explica Tiago Rodrigues, autor do texto e cocriador deste espetáculo sem encenador (e já aí vamos), é uma relação entre dois casais separados por 50 anos e uns milhares de quilómetros a partir deste livro que é “Anna Karenina” mas podia ser outro. Porque em “Como ela morre” não é a morte de Anna Karenina que importa. “O problema não é se ela morre ou não no livro, é o ‘como’, o detalhe, o pormenor da decisão desta palavra e não aquela que faz com que a literatura tenha ou possa ter nas nossas vidas”, diz Tiago Rodrigues acrescentando que o que vamos encontrar aqui é essa “apologia do poder da literatura”, que tentou dissecar com este texto, que foi sendo construído ao longo dos ensaios e que nos dizia há dois dias que até ao momento da estreia poderia ainda ser alterado.

Versão radical de estar em palco

Para os quatro atores, os ensaios de palco começaram apenas há alguns dias e no ensaio de imprensa a que assistimos no início da semana a peça continuava a ser construída. Criação à medida do processo de trabalho da tg STAN, companhia com que Tiago Rodrigues trabalhou pela primeira vez há 20 anos e para a qual escreve agora o primeiro texto. “Mais do que não haver encenador”, explica, “não há uma decisão completamente fechada de como propor este espetáculo. Há um mapa do que pode acontecer em palco, há obviamente um grande rigor na relação com o texto, mas depois o Pedro, a Isabel, o Frank e a Jolente tomam também em palco decisões a cada noite em função daquilo que é o debate que fizemos à volta de a mesa [nos ensaios de mesa que no caso deles se prolongam praticamente até à estreia] e que agora estamos a fazer ainda em palco.”

Com todos os riscos que há em fazer um espetáculo que se faz a cada noite, sem marcações nem grandes regras, Tiago Rodrigues vê aqui “uma versão radical de estar em palco”, ao dar importância ao teatro com tudo o que ele tem de imprevisível. “Sabemos quais são os ingredientes, sabemos quais são as regras do jogo. Eles estão em palco com um texto que lhes propus a continuar uma conversa que nós temos e a partilhá-la com o público, o que significa que a cada noite podem surgir ideias. Se surgirem, por que é que havemos de fingir que essas ideias não surgiram? Por que é que não havemos de as perseguir nessa noite?”

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