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Com ou sem maquilhagem?


Ouvi uma vez uma história, contada por um professor de Materiais II, que nunca mais esqueci. Contou ele que, nos seus tempos de jovem arquitecto, se tinha perdido de amores por uma colega que era, confessou ele, uma "mulher de se perder a cabeça". E, ao que parece, era de facto cobiçada por muitos rapazes. Pois tinha ele a sorte de ter uma relação próxima com a rapariga. A coisa estava bem encaminhada para o jovem arquitecto. Um dia aconteceu cruzar-se com ela na rua. Mas não a reconheceu. O que tinha acontecido? Ela estava sem maquilhagem. Quando percebeu que era ela ficou de tal maneira chocado que o seu sonho de se casar com a rapariga se desmoronou de uma vez só.
Lembrei-me desta história porque às vezes fico a pensar se isto não acontece também com a Igreja. Ainda há bem pouco tempo tive uma boa conversa que gravitava à volta deste problema: um padre, como tantos outros, que fala e escreve sobre Deus de uma forma especialmente eloquente, que se preocupa sempre em enfatizar o Deus de amor, que realça a caridade como vocação especial dos cristãos: esse mesmo padre é, ao mesmo tempo, conhecido por ter frequentes acessos de mau humor e de antipatia, chegando a ser até um bocado bruto com as pessoas.
É claro que nos podemos indignar perante tal falta de coerência. Temos todo o direito de reclamar contra este tipo de atitude. Mas, a verdade é que, conforme me vou conhecendo a mim próprio e à natureza humana cada vez menos me espanto com estas coisas. Cada vez mais compreendo estes contrastes. É que nós não somos monolíticos, não somos estáticos nem uniformes. A realidade humana é muito mais complexa.
O que me parece de estranhar, em particular dentro da Igreja, é quando tudo é demasiado arrumadinho, quando tudo parece absolutamente puro. Exemplos? Quando um padre, uma religiosa, não tem uma única manifestação de sentimentos socialmente menos correctos. Quando em diálogo se exagera nas expressões beatuchas. Quando as homilias só se referem a temas "santos" e com palavras "santas" que ninguém sabe bem o que significam em concreto. Quando a relação com Deus é sempre impecável, fantástica, bestial. Quando as cerimónias são de uma solenidade tal que ofuscam o que se está ali a celebrar. Quando – coisa que me irrita profundamente - se apresenta os santos com tais floreados de pureza, tais santos barroquismos, que deixam de ter alguma coisa a ver connosco, passam a ser uma espécie de extra-terrestres.
Ora, o problema da maquilhagem é que cria distância, separa da realidade, é enganadora. E uma Igreja maquilhada, perfeita, é uma Igreja fora do mundo, desencarnada. Como podem, então, as pessoas identificar-se com ela?
E porque não havemos de, antes pelo contrário, apresentar a Igreja sem maquilhagem nenhuma? Mostrá-la naquilo que tem de bom e de menos bom é precisamente mostrá-la naquilo que tem de melhor. É que a grande virtude da Igreja está, precisamente, em mostrar que é composta por pessoas normais, pessoas fracas, com dúvidas, com sofrimentos, com carências; mas, ao mesmo tempo, pessoas que não se deixam ficar, que acreditam num caminho, que se apoiam numa Pessoa e que podem apresentar um projecto de felicidade a que mais ninguém tem acesso.
Essa é a grandeza da Igreja. Essa é a Igreja encarnada: a que aponta o Céu; mas mantém os pés no Chão.

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