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Espiritualidade
Da Quaresma à Páscoa
6.º Domingo da Quaresma: Reaprender a arte da procura (II)
«Ou qual é a mulher que, tendo dez dracmas, se perde uma, não acende a candeia, não varre a casa e não procura cuidadosamente até a encontrar? E, ao encontrá-la, convoca as amigas e vizinhas e diz: “Alegrai-vos comigo, porque encontrei a dracma perdida.” Digo-vos: Assim há alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte.» (Lucas 15, 8-10)
Varrer
Varrer é um verbo ativo. Não fico apenas a lamentar o sucedido. Aceito «varrer», limpar, transformar, aclarar. Amontoam-se poeiras e desordens de todo o tipo. Penso, muitas vezes, no minúsculo planeta do Principezinho, a personagem criada por Saint-Exupéry.
«Como em todos os planetas, no planeta do Principezinho havia ervas boas e ervas daninhas e, logo, sementes boas de ervas boas e sementes daninhas de ervas daninhas. Mas as sementes são invisíveis. Dormem no segredo da terra até que a uma lhe dê para acordar... Então, espreguiça-se e começa a lançar timidamente um pequeno rebento inofensivo e encantador em direção ao Sol. Se é um rebento de rabanete ou de roseira, pode crescer à vontade. Mas mal se perceba que é de uma planta daninha, é preciso arrancá-lo imediatamente. No planeta do Principezinho havia umas sementes terríveis... eram as sementes de embondeiro. O solo estava infestado delas. Ora, se só se reparar num embondeiro quando este já for bastante grande, nunca mais ninguém se vê livre dele. Atravanca o planeta todo. Esburaca-o com as raízes. E um planeta muito pequeno, com muitos embondeiros, acaba fatalmente por explodir. "É uma questão de disciplina", dizia-me, dias depois, o Principezinho. "De manhã, quando nos levantamos, lavamo-nos e arranjamo-nos, não é? Pois lá também é preciso ir limpar e arranjar o planeta"... Às vezes, não faz mal nenhum deixar um trabalho para depois. Mas com os embondeiros, é sempre uma catástrofe. Uma vez fui a um planeta habitado por um preguiçoso. Não esteve para se ralar com três arbustos...»
Mesmo se a nossa vida se parece a um ínfimo planeta, os trabalhos são inúmeros e diários. No fundo, trata-se de aceitar que a vida reclama de mim, nesta hora, um enérgico sim. Tenho de lutar para ser eu. Se não varrer a minha casa, ela deixa de ser habitável, deixa de ser minha...
No diário de Paul Claudel há uma frase curiosa: «A vida espiritual não é uma questão de portas, mas de janelas.» De facto, não se trata de sair do que sou ou de buscar na exterioridade a solução, mas de abrir as jane­las e deixar o ar de Deus entrar, deixar circular o vento do Espírito.
Procurar cuidadosamente
A nossa procura de conversão não é exterior. Não pretendemos chegar a fazer uma tabela ou uma lista onde amontoamos as nossas imperfeições, como se entre elas não existisse um nexo... e nesse nexo não estivesse, de facto, o que eu sou. Há razões de fundo e obstáculos interiores em nós que é necessário identificar. «Procurar cuidadosamente», ensina a mulher da parábola. Nós também temos de ir ao fundo e procurar a raiz daquilo que nos desvitaliza espiritualmente. Talvez seja um enorme, um terrível medo... Talvez seja uma insegurança fundamental no amor de Deus... Talvez me falte a confiança e também, por isso, a minha coragem é incipiente... Talvez tudo nasça de uma incapacidade de perdoar, isto é, de sobrepor às feridas e humilhações sofridas a certeza de que o amor é o único bem... Eu procuro cuidadosamente. Pudéssemos nós dizer com Santa Teresa Benedita da Cruz: «A minha procura da verdade foi autenticamente uma oração.»
Alegrai-vos comigo
A reconciliação ficaria inacabada se ela não desembocasse num reencontro com a alegria. Muitas vezes, a alegria é circunstancial: contamos ou ouvimos uma história engraçada, há uma situação divertida que se cria, etc. Mas a mulher alude a uma coisa diferente quando diz: «Alegrai-vos comigo.» Há uma genuína e transbordante alegria por aquilo que Deus faz acontecer em nós: a revitalização surpreendente e pascal da nossa vida. A alegria não é, então, um aparato exterior, mas nós próprios nos tornamos motivo de alegria uns para os outros, uma alegria sentida não apenas na terra, mas que invade os próprios céus.
José Tolentino Mendonça
In O tesouro escondido, ed. Paulinas

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