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Certa vez, estando Jesus afastado dos seus companheiros, os apóstolos puseram-se a discutir entre si qual seria a maior de todas as peregrinações.

Um dizia: “É a peregrinação que tanta gente faz pela estrada nacional até Fátima arrastando-se quilómetros atrás de quilómetros, correndo risco de vida e suportando dolorosas bolhas nos pés”. Outro contrapunha: “Não! É a peregrinação do Caminho francês até Santiago! Nenhuma outra tem a duração total de um mês”. Outro objectava: “Nenhuma dessas peregrinações é tão radical como é a que os noviços jesuítas fazem sem dinheiro nenhum e a pedir dormida e comida, sujeitos ao que lhes ofereçam”. Outro ainda dizia convicto: “Não há peregrinação que aproxime mais de Deus do que visitar a Terra Santa, os lugares onde Deus passou”.

Ouvindo o rebuliço que se gerara entre os seus companheiros, Jesus aproximou-se e inteirou-se logo do tema de conversa. Pensou para com os seus botões: “Seus tolos! Ainda não perceberam mesmo nada de nada”. “Ouçam” - disse com os braços levantados pedindo silêncio e atenção. “A maior de todas as peregrinações…” – nesse instante, enquanto os apóstolos se concentravam à sua volta, agachou-se a desenhar uma espiral no chão – “a maior de todas?…” – fez uma pausa, como quem passa uma história já conhecida pelo coração, e começou a contar uma parábola. Dizia assim: “Um homem tinha dois filhos. O mais jovem disse ao pai: «Pai, dá-me a parte da herança que me cabe»… Poucos dias depois, o filho mais jovem partiu”.

Ainda a história não ia a meio e os seus ouvintes interromperam-no num coro de protesto. Gritou um deles: “essa história já a conhecemos de trás para a frente: o rapaz meteu-se na boa-vida, depois esbanjamento, devassidão, fome, arrependimento e… pronto, regresso a casa do Pai”. “O que é que essa história tem a ver com a nossa discussão?!” resmungou outro.

Jesus fechou os olhos por breves segundos. Respirou fundo e perguntou: “Quem vos parece que estava mais longe do Pai?”. “Ah! Essa é fácil” – concordaram todos – “é óbvio que o filho mais novo estava mais longe e depois se arrependeu ficando no final mais próximo do Pai!”.

“Pois… bem me parecia” – suspirou Jesus - “tinha ficado com a impressão de que vocês não tinham percebido a parábola. E tinha razão. Por isso, agora em privado, queria contá-la melhor”. “Se bem me lembro a parábola tinha acabado com o Pai a justificar-se, perante um filho mais velho carrancudo e ressentido, a dar as razões da sua alegria, dizendo, simplesmente, que está muito feliz porque o seu filho que estava perdido foi reencontrado”.

“Para o mais novo a história acabou mas, para o mais velho, parece que algo fica por contar. Toda aquela raiva contida, todo aquele ressentimento furioso, não pode ter ficado simplesmente arrumado no interior daquele rapaz. Não vos parece? É uma situação insuportável! O que terá provocado? O que terá acontecido a seguir?”. Os seus ouvintes permaneceram mudos à espera que continuasse.

“Inevitavelmente o filho mais velho acabou, também, por sair de casa. Um dia, farto da vida que levava, farto de cumprir ordens e corresponder às expectativas do Pai, saiu antes do amanhecer, sem que ninguém o visse. Deixou apenas um bilhete escrito, respeitosamente dirigido a seu Pai, com as seguintes palavras:

«Desculpa Pai, mas... estou farto de ser o filho bem comportado. Estou farto de fazer tudo segundo as regras. Estou farto de ser elogiado e admirado porque faço tudo como deve ser. Estou farto! Sempre cumpri as tuas ordens o melhor que soube. Mas chega a um ponto em que isso não chega. A rotina, o aborrecimento, as pequenas irritações, os ressentimentos vão-se avolumando e chega a um ponto em que tudo é pesado demais. A vida perde o sentido, perde a alegria. O fardo pesa demais. Não aguento. Não aguento aguentar mais. Escrevo-te para te dizer que me vou embora. Tenho que ir. Não sei se volto».

“E então?!... depois, ele voltou?” perguntou um apóstolo, ansioso. “Pois…” – continuou Jesus – “no fim regressou, tal como o seu irmão. Mas, primeiro, teve que perder de vista o Pai. Teve que se desvincular das regras, do dever, da preocupação com a própria imagem…”.

“Mas onde eu queria mesmo chegar era a isto: vocês não percebem que no fundo, no fundo, os dois irmãos são bem mais parecidos do que parece à primeira vista? No fundo ambos estão, de início, igualmente perdidos em casa. Ambos precisam de se encontrar. A diferença é que um assume a sua rebeldia, o outro contém-na. Um sai de casa e parte à aventura, o outro permanece em casa, cumpridor por fora mas ressentido por dentro. Um paga a factura da sua impetuosidade, o outro corrói-se interiormente pela inveja. Um regressa transformado por dentro para um Pai que já não é o mesmo de antes, o outro está na mesma porque não deu sequer um passo”.

“Mas o regresso do irmão mais novo e a festa que o Pai faz, em contraste com a violência interior que o irmão mais velho sente, acaba por ser uma graça para este último pois fá-lo perceber que aos seus actos exteriores não corresponde uma atitude interior. Percebem agora?”.

“E isto pode ser facilmente aplicado à nossa vida particular: vocês procuram ser uns direitinhos que se limitam a cumprir por cumprir, porque está mandado, porque se fizerem tudo como deve ser ganham a santidade? Nesse caso, devo avisar, se procuram a satisfação em vocês próprios, se descansam na vossa própria perfeição, não vão longe: vocês não se relacionam com Deus mas com uma série de leis e ideias que pouco têm a ver com o Pai. Mais tarde ou mais cedo vocês secam interiormente. Ou vocês procuram antes os máximos? O cumprimento por uma relação de amor? A procura não da perfeição mas da santidade? Nesse caso, meus caros, se colocam o vosso descanso na santidade de Deus e no esvaziamento de vocês próprios, então estão no bom caminho”.

“E o mesmo podemos dizer sobre a comunidade em que vivemos. Se for uma comunidade que vive pela primeira atitude, baseada apenas nas regras, nos mandamentos, no tem-que-ser, não passará de uma Igreja-museu. Se for uma comunidade que vive para além das regras e se preocupa em receber o Espírito, então essa será uma Igreja-viva”.

“Então e a peregrinação?” – perguntou um mais desassossegado.

“Pois… se ouviram o que acabei de vos dizer estarão a partir de agora mais atentos à diferença entre o que acontece exteriormente e o que acontece interiormente: a diferença entre as acções e as motivações; entre o que fazemos e o que está no coração”.

“E falando agora, em particular, da maior de todas as peregrinações tenho que vos dizer que nenhum estava certo: a peregrinação a Fátima pode ser duríssima mas procurar o sofrimento, só por si, não leva a Deus; o Caminho de Santiago pode ser o mais longo de todos mas grandes caminhadas qualquer andarilho faz; quanto à desafiadora peregrinação dos noviços ela pode ser simplesmente vivida por espírito aventureiro; e até a peregrinação à Terra Santa pode ser feita exclusivamente em turismo e por mera curiosidade”.

Disse ainda Jesus: “É bom que se lembrem que quando chegarem ao Céu, Deus-Pai não vos vai perguntar se fizeram muitas peregrinações, se visitaram muitos santuários, se estiveram em muitos lugares santos, se cumpriram todas as regras para alcançar as indulgências. Também não vai perguntar se foram à missa todos os Domingos, nem se se confessaram pelo menos uma vez por ano. Reparem que o caminho que Deus indica não é bom porque Deus o indica mas Deus indica-o porque o caminho é bom. O que faz toda a diferença”.

Perante algumas caras mais confusas Ele acrescentou: “O que Deus vai perguntar, e é o que vai perguntando a cada momento, é se foram tão felizes quanto poderiam ter sido! O que é o mesmo que perguntar se tudo aquilo que fizeram ajudou ou não ajudou a chegar mais perto dEle”.

E rematou: “Por isso… a maior de todas as peregrinações, que é a nossa grande peregrinação e que supera todas as outras que vocês referiram, é a peregrinação interior em direcção a Deus. E, por muito que custe, ela implica que continuamente abandonemos as ideias que temos do Pai e de nós mesmos para partir, de novo, à procura da verdadeira face de Deus. É por isso que, enquanto andarmos na Terra, seremos sempre peregrinos. De casa em casa até ao definitivo regresso a Casa”.

Nota: diálogo imaginário com Jesus inspirado nas seguintes fontes:
JESUS CRISTO – “O filho perdido e o filho fiel: o filho pródigo”. In: A Bíblia de Jerusalém (Lc 15, 11-ss). Lisboa: Editora Paulus, 1995. NETTO DE OLIVEIRA, José António – “Perfeição ou Santidade”. In: http://www.oracaocentrante.org/perf.htm. NOUWEN, Henri - O regresso do filho pródigo. Lisboa: Paulinas Editora, 2001.
[artigo publicado no CÁBula, jornal oficial do CAB]

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