Avançar para o conteúdo principal

Nunca conheci o meu pai.

Ou melhor, nunca conheci verdadeiramente o meu pai. Morreu num desastre de carro teria eu uns três anos, não mais. Algum bêbado em contramão espetou-se de frente contra ele e ele teve morte instantânea. Mais isto só o soube muito mais tarde.

As memórias que tenho dele muito provavelmente não serão minhas. Lá em casa há apenas uma fotografia dele, semi-escondida a um canto, mas os meus avós deram-me um álbum cheio de retratos e instantâneos.
Admirou-me, recentemente, o parecidos que somos. Tirando o bigode fininho, que devia estar na moda nos anos 70, temos os mesmos olhos, a mesma boca, o mesmo sinal no canto do olho esquerdo. As nossas expressões, disse-me a minha mãe um dia, são muito similares.

Tão parecidas que às vezes me assustas.

Há ainda um vídeo antigo, filmado maioritariamente pelo meu pai, mas também com algumas filmagens dele comigo ao colo. É uma espécie de documentário do meu nascimento. Começa com a minha mãe sorridente a exibir uma barriga comigo lá dentro. Há algumas cenas na maternidade, onde ele aparece pela primeira vez, a filmar a sua própria expressão de felicidade.

Mas a parte que sempre me fascinou — ao ponto de me parecer que consigo recordar toda a cena — é de quando, sorrateiramente, a minha mãe, de câmara em punho, o vai encontrar comigo ao colo, a ler-me um livro. A minha mãe não sabe que livro era, apenas que não era certamente um livro infantil. Não senhor. Um romance clássico, talvez um livro de poesia.

Ele gostava muito de ler para ti, de ler coisas sérias e de crescidos.

É esse livro que eu tenho buscado toda a minha vida. O livro que eu hei-de ler aos meus filhos.

Nunca mais parei de ler.

José Maria Archer 
01.07.2012

http://www.essejota.net/index.php?a=vnrhrlqqvkuivvqluprhrsqhutrhqqqkqruiqjrurtrsqtrnvvqnqlqr

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Não é uma sugestão, é um mandamento

Nos Evangelhos Sinóticos, lemos muito sobre as pregações de Jesus a propósito do «maior mandamento». Não é a grande sugestão, o grande conselho, a grande linha diretiva, mas um mandamento. Primeiro, temos de amar a Deus com todo o coração e com toda a nossa força, sobre todas as coisas. Ao trabalhar com os pobres camponeses da América Central, que não sabiam ler nem escrever, a frase que eu sempre ouvia era: «Primero, Dios». Deus tem de ser o primeiro nas nossas vidas, depois, todas as nossas prioridades estão corretamente ordenadas. Não amaremos menos as pessoas, mas mais, por amar a Deus. A segunda parte do «maior mandamento» é amarmos o próximo como a nós mesmos. E Jesus ensina-nos, na parábola do Bom Samaritano, que o nosso próximo é esse estrangeiro, esse homem ferido, essa pessoa esquecida, aquele que sofre e, por isso, tem um direito acrescido sobre o meu amor. Jesus manda-nos amar os estranhos. Se só saudamos os nossos, não fazemos mais do que os pagãos e os não cr
Talvez eu seja O sonho de mim mesma. Criatura-ninguém Espelhismo de outra Tão em sigilo e extrema Tão sem medida Densa e clandestina Que a bem da vida A carne se fez sombra. Talvez eu seja tu mesmo Tua soberba e afronta. E o retrato De muitas inalcançáveis Coisas mortas. Talvez não seja. E ínfima, tangente Aspire indefinida Um infinito de sonhos E de vidas. HILDA HILST Cantares de perda e predileção, 1983

Oh Senhor

Ó Senhor, que difícil é falar quando choramos, quando a alma não tem força, quando não podemos ver a beleza que tu entregas em cada amanhecer. Ó Senhor, dá-me forças para poder encontrar-te e ver-te em cada gesto, em cada coisa desta terra que Tu desenhaste só para mim. Ó Senhor, sim, eu seu preciso da tua mão, do abraço deste amigo que não está. Dá-me luz, à minha alma tão cansada, que num sonho queria acordar. Ó Senhor, hoje quero entregar-te o meu canto com a música que sinto. Eu queria transmitir através destas palavras. Fico mais perto de ti.