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Auschwitz I, Bloco 5

Por Rui Patrício, publicado em 8 Set 2012

E é essa capacidade de crença que nos leva a fazer o melhor, mas também o pior, seja como vítimas, seja como carrascos


O que mais impressiona no museu Auschwitz-Birkenau não é estar no local, recordar o que sabemos e imaginar o que aconteceu. Isso molha os olhos, dá um nó nas entranhas e deixa a inteligência em fogo. Passar pelo bloco 10 de Auschwitz I – o campo “brando”, comparando com Auschwitz II (Birkenau) – e ouvir a narrativa sobre as experiências médicas marca e dói, mas não é o que mais impressiona. O cabelo tirado às mulheres – ainda vivas ou já cadáveres – está exposto e o vidro que nos separa dele não evita que imaginar seja muito doloroso. O mesmo se passa com os sapatos, os óculos, os restos de roupas de criança. Tudo isso é muito, tudo isso é demasiado, mas também não é isso o que mais impressiona. E nem falo da câmara de gás ou da reconstituição dos fornos, nem do pátio de fuzilamento ou das retretes colectivas. Não falo, porque não saberia o que dizer, mas também porque não é isso o que mais impressiona. E também não é saber que a casa do comandante do campo ficava paredes-meias com um forno crematório, junto ao qual os seus filhos brincavam.

O que mais impressiona está no bloco 5 de Auschwitz I. Primeiro, temos as malas de viagem, depois panelas e outros utensílios de cozinha e, finalmente, pincéis de barba, escovas de cabelo e até restos de embalagens de produtos de beleza. E tudo isso é o que mais impressiona, porque tudo isso mostra que aquelas pessoas acreditavam, esperavam, supunham. Apesar de tudo, apesar dos rumores e das notícias, apesar das evidências e da lógica, à medida que os comboios as transportavam, elas acreditavam que iam viver. Só quem acredita leva mala de viagem, panela e, sobretudo, utensílios de higiene e de beleza. Cada pincel de barba, cada escova de cabelo, cada lata de maquilhagem é um monumento à capacidade que o ser humano tem de crer. A organização e a propaganda nazis ajudavam a que os destinados ao extermínio acreditassem que iam trabalhar e que tinham futuro. Mas isso não explica tudo.

Isso não explica que quase todos tenham tapado ouvidos aos rumores e às notícias, que quase todos tenham caminhado ordeiramente até dentro das câmaras de gás, que muitos não tenham aproveitado a abertura das fronteiras, até 1940, para fugir. Não, isso não chega. Para perceber, é preciso ter em conta que cada um de nós tem uma imensa capacidade de crer e de se entregar com base nisso. E é essa capacidade de crença que nos leva a fazer o melhor, mas também o pior, seja como vítimas, seja como carrascos. É essa capacidade de acreditar que explica a beleza das várias formas de criação, mas também a facilidade da manipulação, a eficácia do poder ou a marcha para o extermínio no Leste. Quando uma mulher judia, com uma criança pela mão, sai do gueto e coloca na mala - antes de entrar num vagão de gado – algumas peças de roupa, uma panela, uma escova de cabelo e uma lata de pó para a cara, é porque ela crê, ela quer acreditar. E isso faz com que tudo seja possível, o melhor e o pior. Neste caso, o pior. E pode acontecer em qualquer altura, e em vários lugares.

http://www.ionline.pt/opiniao/auschwitz-i-bloco-5

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