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O que disse Judas nessa noite


                                 Os discípulos olhavam uns para os outros,
                                         pois não sabiam de quem falava.
                                         Mt. 13.22



Longamente adestrados na suspeita e fartos
de mentir-nos uns aos outros,
canalhas que sorriem
enquanto bebem os seus whiskies.

Tempo de contrição: fizemo-nos tanto mal.

E hoje, se tento olhar-nos como quem de fora
alcança ver o centro das coisas,
vejo monstros perfeitos: moscas contra um vidro.

E contudo
houve um tempo de rosas selvagens no mundo
que habitámos a sós como amantes plurais,
e era boa essa mão distraída num ombro,
beber do mesmo copo em lentas cerimónias de saliva,
nus de verdade
contra  o céu bêbedo de uma noite inventada.

A noite é o salão que enchemos de fumo quase às escuras.
Tenho medo da noite que nos tira o pouco que nos resta ainda:
essas rosas, as mãos sobre o ombro.

Amigos tantas vezes atraiçoados:
depois  das mentiras, perdoemo-nos
ainda, enquanto há tempo.
No fundo continuamos a ser aqueles amantes.

Depois, se a verdade só nos fizer mal,
voltemos a mentir-nos, mas desta vez a sério, como dantes.

Refugiemo-nos juntos numa grande mentira redentora:
a cascata selvagem onde nadar nus,
os copos de vidro,
cabeças que repousam sobre peitos tranquilos.

Ah, não quero, não quero
que morra o que talvez dure um dia,
a sua marca inolvidável diante do fumo disperso deste bar.

Pois a noite, o fumo, asfixiam-nos;
somos água de gelo sem sabor,
vultos na névoa. Estamos a morrer
e que pouco vos importa.

Faz-se tarde. Pensai nessa música
 assobiada ao entardecer, quando sorri a água
e os corpos estão em paz consigo.
Brinquedos de calor, ilhas agradecidas.

Preferis a verdade de um destino automático?

Adeus, meus traídos amigos Muito tempo
Amei vossas feições que já outra luz torna feias e estranhas

Vai amanhecer o dia sobre as flores secas.

Encerremos o mundo com um beijo.


- José Luis Piquero 
(tradução de Joaquim Manuel Magalhães)
in Poesia espanhola, anos 90

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