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A amizade é uma experiência mais frequente que o amor; mas todos os dias ouvimos histórias sobre ex-maridos e ex-namoradas, ao passo que pouca gente fala dos ex-amigos. E ao nosso lado há amizades que acabam, como uma implosão de um edifício em ruínas, estrépito abafado e uma grande nuvem de pó. Disso fica apenas um grande silêncio.
As pessoas não gostam de reconhecer que a amizade é um laço frágil. A mitologia diz que os amigos são indestrutíveis e eternos. Há por isso um grau de decepção no fim de uma amizade que cobre de vergonha os envolvidos. Uma paixão amorosa está umbilicalmente ligada a dimensões mais superficiais e passageiras, como o aspecto físico ou o desejo sexual. Quando o amor acaba, a tragédia é minimizada porque já sabíamos que “o amor acaba”. O fim de uma amizade é uma surpresa mais chocante. Quando uma amizade acaba temos que reconhecer, contrariados, que a amizade, tal como o amor, é uma eternidade fraudulenta.
Norman Podhoretz escreveu uma curiosa autobiografia chamada Ex-Friends (2000), em que conta como se zangou com todos os seus amigos do meio intelectual americano. No caso de Podhoretz, as amizades terminaram por “discordâncias políticas”. Creio que é um motivo atípico. A amizade suporta bem opiniões divergentes. Eis o que uma amizade não aguenta: deslealdades, traições, ausências, crueldades, competições, impiedades. Já passei por algumas rupturas violentas, e sei que as amizades acabam porque pomos em causa o carácter do amigo (e ele o nosso). Reparem que não me refiro às amizades que se desvanecem, à intensidade que diminui, às pessoas com quem vamos perdendo contacto aos poucos, sem premeditação, só porque mudaram os nossos hábitos ou as nossas circunstâncias. De tempos a tempos, todos temos amigos de quem já não somos amigos. Mas isso é muito diferente de um ex-amigo.
Um ex-amigo é alguém a quem um dia entregámos as chaves todas que tínhamos. Teve acesso total às nossas ideias e emoções. Um ex-amigo foi sempre um amigo íntimo. É isso que explica o decoro antiquado com que evitamos o assunto. O ex-amigo representa um juízo ético errado. É uma mancha humana. Um momento em que nos enganamos completamente sobre a humanidade, ou sobre um humano em concreto. É fácil dizermos “eu achava que estava apaixonado” e garantirmos que confundimos o amor com uns olhos azuis. Mas com um amigo, que é um peixe de águas profundas, não temos essa desculpa. Quem é que diz “eu achava que era amigo dele”? O fim de uma paixão revela um erro comum. O fim de uma amizade é um erro pessoal. Sem direito a perguntas.
O ex-amigo nunca nos é indiferente. Uma das minhas regras sagradas de conduta é que nunca digo mal de um ex-amigo. Isso é tanto mais estranho quanto sou capaz de dizer mal de um amigo, em casos graves. Mas um ex-amigo é como uma investigação policial inconclusiva. É um caso arquivado por desistência e que pesa na consciência. Se eu criticasse um ex-amigo era como se ele ainda fosse meu amigo. E isso seria uma sensação incómoda. Ao mesmo tempo, o ex-amigo não é exactamente um inimigo. É um fantasma, uma assombração de que nos lembramos sempre, como lembramos as mulheres que amámos. O amigo entrou na Cidade Proibida e agora não nos perdoamos que ele tenha visto os leões e os archeiros. Quando nos arrependemos de uma intimidade sexual, deitamos as culpas para a loucura temporária que é o desejo. Mas nunca perdoamos o entusiasmo lúcido com que fizemos um amigo e depois o perdemos. Não estamos sequer arrependidos: estamos tristes com uma tristeza mais suportável e mais duradoura que a tristeza amorosa.
Quando nos cruzamos com um ex-amigo e não nos cumprimentamos, pesa no coração o logro que é a fraternidade. Sem a qual a igualdade e a liberdade afinal não valem nada.
Pedro Mexia Público — P2, 16-08-2008

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