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Eu médica?

Um homem morto. Uma realidade directa que me tocava de perto. Tinha estropiado cadáveres na morgue, chegara a ver enfermos a agonizar durante as lições nas enfermarias; vivia cercado de doenças, misérias, desertores. Mas tudo isso eram acontecimentos necessários para a lógica dos tratados. Esta morte dizia-me respeito. Conhecera o primo Lucas longe desse ambiente; era um homem, uma coisa viva e misturada nas recordações da minha infância; um ser pronto a sofrer, pronto aos júbilos e às desventuras. Os outros homens da enfermaria ou do necrotério não tinham para mim uma história, serviam para confirmar uma ciência.
Alguma coisa estava brutalmente errada. Haviam-me iludido, magoado. Recebia uma lição. Daí em diante sofreria até à angústia o que é ter uma vida nas nossas mãos, uma vida que nos é entregue: um misto de desafio, de responsabilidade e de desespero.

Fernando Namora,
in RETALHOS DA VIDA DE UM MÉDICO

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