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Canonizações e seus perigos

DN
por ANSELMO BORGES maio 2014

No passado domingo, Roma concentrou mais de um milhão de pessoas, vindas de todo o mundo para a canonização dos papas João XXIII e João Paulo II, duas figuras que marcaram de modo decisivo a Igreja católica e o mundo no século XX, como tentarei mostrar no próximo sábado. Hoje, quereria tão-só reflectir sobre os perigos das canonizações.

É normal que em todas as instituições e sociedades se lembre e honre figuras que se destacaram. Assim, também na Igreja, desde o início, se venerou a memória dos mártires, que deram a vida por Cristo, e, depois, dos "confessores", cristãos exemplares. Também por causa dos abusos - durante quase todo o primeiro milénio do cristianismo, foi a comunidade crente a tomar a decisão de declarar quem era santo -, o papa Urbano VIII, em 1634, reservou a canonização dos santos ao bispo de Roma, sem que isso tenha significado o fim dos abusos. Em 1983, João Paulo II reforçou este centralismo papal, determinando que é "unicamente ao Sumo Pontífice que compete o direito de decretar" se o servo de Deus em causa merece ou não ser proposto como exemplo e modelo para "a devoção e imitação dos fiéis".

O teólogo J. M. Castillo, que escreveu uma história da canonização, faz notar que, nos santos que canoniza ou não, o poder papal acaba por pôr em evidência o modelo de Igreja que quer impor. Por exemplo, quando Eugénio III canonizou, em 1146, o imperador Eugénio II da Baviera, o que estava sobretudo em causa era "propor um modelo de governante político, piedoso e submisso à Santa Sé". Como consequência das Cruzadas, mudou o ideal de santidade, a ponto de uma pintura do Fim do Mundo retratar Cristo como soldado a cavalo. Outro exemplo eloquente é o papa Gregório VII, que morreu em 1085, sendo canonizado em 1728. Foi ele que operou a chamada "reforma gregoriana", que impôs o celibato obrigatório e centralizou o poder da Igreja no papa, de tal modo que o teólogo cardeal Y. Congar pôde escrever que, desde então, "obedecer a Deus significa obedecer à Igreja e isto, por sua vez, significa obedecer ao papa e vice-versa". Em pleno século do Iluminismo, era preciso exaltar o papado, recuperando a memória de um papa que já poucos podiam recordar.

Foi por Celso Alcaina que soube do número de pessoas envolvidas numa canonização: uns 24 funcionários permanentes na Congregação para as Causas dos Santos, 14 advogados de defesa, 2 promotores da fé, 20 cardeais, 10 relatores, 228 postuladores adscritos, 70 consultores, muitos peritos em diferentes assuntos, vários notários. Pode-se, pois, imaginar as somas de dinheiro que esta parafernália burocrática custa, percebendo-se os perigos de discriminação em que ficam homens e mulheres verdadeiramente santos, pois levaram uma vida heróica, no cumprimento do dever e na entrega aos outros, mas que não têm suporte financeiro, publicitário, político. Pergunto sempre: porque é que não se canoniza o Padre Américo e tantos casais exemplares?

Castillo: Num dos estudos mais fiáveis que se fizeram mostra-se que "de 1938 casos examinados de santos canonizados, 78% pertenceram à classe alta, 17% à classe média e só 5% à classe baixa".

E lá está a magnificência de uma canonização, que pode ferir a simplicidade do Evangelho. Quando se trata de canonizar papas, sobrevém o perigo da endogamia e da canonização do poder.

E tem de haver o "milagre" exigido como comprovativo de santidade. Isso é magia. E pensar que Deus interrompe ou suspende as leis da natureza supõe que Ele está fora do mundo e que, de vez em quando, vem dentro e vem para uns e não vem para outros. Ora, Deus não está fora mas dentro, como fundamento do milagre da existência de tudo. Precisamente porque tudo é milagre - o milagre de existir - não há "milagres".

Também nisto, estou com a minha irmã, que diz: "Eu ligo pouco a estas coisas. Eu sou como o nosso pai que só rezava ao Nosso Senhor".

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