Avançar para o conteúdo principal

Porque há quem grite em silêncio

PÚBLICO


Foi longa a espera de Rosa. Doente de cancro, com graves problemas de mobilidade, esta mulher de 46 anos teve nesta segunda-feira alta do Hospital Joaquim Urbano, onde lhe trataram mais uma infecção respiratória e a deixaram sair, mesmo sabendo que, naquele dia, ela não tinha uma casa para onde ir. Metida sozinha num táxi, foi parar, desamparada, às escadas da igreja do Carvalhido, na rua onde o marido arruma carros. Aguentou-se ali, deitada, umas cinco horas, até ser transportada pela polícia para um quarto numa pensão de Cedofeita, arranjado pela mesma Segurança Social que lhes cortara o rendimento social de inserção, deixando-os sem capacidade de pagar uma renda.


Felizmente está sol, reparava Paulo Natividade. É o amigo. O amigo que Armindo tem tido desde que a droga, o desemprego e a espiral descendente, contra a qual vai lutando, fizeram dele o arrumador de carros “oficial” da Rua da Prelada. E o amigo que não calou a indignação pela forma como naquela segunda-feira o Hospital Joaquim Urbano deu alta a uma mulher que não tinha, sabiam disso, para onde ir. Armindo tinha-os avisado de manhã. “Fiquei sem casa. Aguentem-na aí até eu resolver o problema”, pediu ao telefone a um médico, à frente de Paulo. Às 14h, quando lá chegou, já ela não estava. Saíra num táxi. Pago, por “pena dela”, pelo director de Serviço de Pneumologia, explicou ao PÚBLICO o assessor de imprensa do Centro Hospitalar do Porto. 


“Ela queria sair. O médico avisou-a do problema da casa, mas a senhora disse que tinha familiares no Carvalhido e deixaram-na sair”, insistiu a mesma fonte, garantindo que, neste caso, não poderiam forçar a intervenção da Segurança Social. Não era a primeira vez que Rosa entrava e saía daquele hospital. Soma outros problemas de saúde ao cancro que, segundo a família, lhe deixa pouca esperança de vida, e “não é uma doente fácil”. Mas Armindo não entende porque cederam e não esperaram que chegasse, tendo em conta a sua condição física débil e as dores que a obrigam a tomar morfina, entre vários outros medicamentos cujo custo não conseguem suportar. Foi deixada por um taxista nas escadas da igreja do Carvalhido às “portas do céu”, como se lê numa parede, e foi um irmão dele, Joaquim, que a descobriu assim, desamparada.


Armindo estava ainda no hospital, quando o irmão lhe telefonou. Pediu ajuda ao seu outro “irmão” Paulo Natividade, que trabalha naquela mesma rua e que acabou por passar a tarde ali, com eles. Pessoas foram chegando, incluindo o pároco responsável pela igreja cuja entrada ostenta uma imagem de Cristo e um mapa da Europa, mostrando a distância entre o Porto e Jerusalém, a Terra Prometida. Segundo o amigo, o sacerdote disse-lhes que procurassem apoio na junta de freguesia e, perante os apelos de quem ali estava, pediu ao sacristão que lhes arranjasse um cobertor. Depois, celebrou-se missa, e os fiéis foram saindo, indiferentes, a maioria deles, ao que ali se passava – deixando ainda mais indignadas duas funcionárias do lar de Monte dos Burgos, Maria Nogueira e Ana Sousa que, ainda de farda, amparando Rosa, quase davam àquele escadório um ar de hospital em hora de visitas. Houvesse conforto…


Ainda assim, alguns paroquianos aproximaram-se, perguntaram, ajudaram. Um euro, dois. Um paliativo para aquela família, com um filho dependente, de 16 anos, que perdeu o rendimento social de inserção, no valor de 408 euros. O rapaz deixou a escola, “para cuidar da mãe”, mas Armindo não sabia explicar se fora esse o motivo do corte. Conhecia, isso sim, as consequências dele. O senhorio do “apartamento” onde dormiam, na Rua Álvares Cabral, fechou-lhes a porta da casa. Trabalha com dinheiro à vista, sem recibos. “Só me deixa entrar se eu lhe pagar 400 euros”, queixava-se o antigo motorista, que, ao mesmo tempo que luta para se afastar da droga que lhe “estragou a vida”, convivia, naquela casa partilhada por outros inquilinos, “com um “ambiente pesado, tentador” para um ex-toxicodependente.


Os haveres deles ainda estavam, nesta terça-feira, todos lá dentro. Nas escadas, na segunda-feira, Rosa vestia a roupa com que saíra do hospital e aguentava, mal, a espera. Dois agentes da polícia, chamados ao local, já tinham há muito pedido ajuda, ligando para o número de emergência social, quando, passavam das 19h, receberam a indicação de que havia para a família um quarto numa pensão, em Cedofeita. E foi deitada nos bancos traseiros do carro patrulha da PSP que esta mulher, a quem foi detectado há um ano um cancro no pulmão, foi levada. O cobertor que lhe arranjaram nas escadas da igreja foi útil para conseguirem levá-la, de novo escadas acima, até um segundo andar, onde esta terça-feira foi já visitada por uma assistente social – que ficou de ver o que se passou com o processo do rendimento social de inserção e de procurar uma solução de habitação para esta família que, durante uma tarde, deixou, às portas do céu, um exemplo vivo de como a vida pode ser um inferno.


Comentários

Mensagens populares deste blogue

Não é uma sugestão, é um mandamento

Nos Evangelhos Sinóticos, lemos muito sobre as pregações de Jesus a propósito do «maior mandamento». Não é a grande sugestão, o grande conselho, a grande linha diretiva, mas um mandamento. Primeiro, temos de amar a Deus com todo o coração e com toda a nossa força, sobre todas as coisas. Ao trabalhar com os pobres camponeses da América Central, que não sabiam ler nem escrever, a frase que eu sempre ouvia era: «Primero, Dios». Deus tem de ser o primeiro nas nossas vidas, depois, todas as nossas prioridades estão corretamente ordenadas. Não amaremos menos as pessoas, mas mais, por amar a Deus. A segunda parte do «maior mandamento» é amarmos o próximo como a nós mesmos. E Jesus ensina-nos, na parábola do Bom Samaritano, que o nosso próximo é esse estrangeiro, esse homem ferido, essa pessoa esquecida, aquele que sofre e, por isso, tem um direito acrescido sobre o meu amor. Jesus manda-nos amar os estranhos. Se só saudamos os nossos, não fazemos mais do que os pagãos e os não cr
Talvez eu seja O sonho de mim mesma. Criatura-ninguém Espelhismo de outra Tão em sigilo e extrema Tão sem medida Densa e clandestina Que a bem da vida A carne se fez sombra. Talvez eu seja tu mesmo Tua soberba e afronta. E o retrato De muitas inalcançáveis Coisas mortas. Talvez não seja. E ínfima, tangente Aspire indefinida Um infinito de sonhos E de vidas. HILDA HILST Cantares de perda e predileção, 1983

Oh Senhor

Ó Senhor, que difícil é falar quando choramos, quando a alma não tem força, quando não podemos ver a beleza que tu entregas em cada amanhecer. Ó Senhor, dá-me forças para poder encontrar-te e ver-te em cada gesto, em cada coisa desta terra que Tu desenhaste só para mim. Ó Senhor, sim, eu seu preciso da tua mão, do abraço deste amigo que não está. Dá-me luz, à minha alma tão cansada, que num sonho queria acordar. Ó Senhor, hoje quero entregar-te o meu canto com a música que sinto. Eu queria transmitir através destas palavras. Fico mais perto de ti.