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O dia dos quatro papas

DN
por ANSELMO BORGES, 10 maio 2014

Os media caracterizaram o passado dia 27 de Abril como a celebração dos quatro papas. Dois - João XXIII e João Paulo II foram canonizados - e dois - o Papa Francisco e o papa emérito Bento XVI - presidiram. Como prometido, tentarei mostrar a importância histórica dos canonizados.

1. João XXIII ficou para a História como o "Papa bom". Filho de camponeses, foi um diplomata fino por onde passou: Bulgária, Grécia, Turquia, França. A experiência das dificuldades da vida e de muitos mundos prepararam-no para a abertura da Igreja ao mundo, com encíclicas fundamentais sobre os direitos humanos, nomeadamente dos trabalhadores e da mulher, e sobre a paz - teve papel relevante na crise dos mísseis -, e a revolução que foi o Concílio Vaticano II, um acontecimento decisivo do século XX.

Com uma bonomia inesgotável, dava respostas com humor, por vezes corrosivo. À pergunta: "Quantas pessoas trabalham no Vaticano?", terá respondido: "Cerca de metade." A um cardeal que se queixou por um funcionário menor no Vaticano ganhar tanto como ele: "Ele tem dez filhos; espero que Vossa Eminência não." A um estudante que lhe perguntou: "Santidade, como é saber e sentir que é o primeiro no Vaticano?", terá retorquido: "Eu estive a contá-los e devo ser o sexto ou sétimo."

Convocou o Concílio Vaticano II. O que seria a Igreja e, consequentemente, o mundo sem ele? A uma Igreja dogmática e hierarquizada, fechada sobre si mesma, devia seguir-se uma Igreja Povo de Deus, a celebrar nas línguas vernáculas, a reconhecer a autonomia das realidades terrestres, a dialogar com o mundo, com as outras Igrejas, com as outras religiões, com os judeus - durante a Segunda Guerra Mundial livrou da morte milhares -, como os ateus. As suas encíclicas foram dirigidas não só aos crentes mas a todas as pessoas de boa vontade, na defesa dos direitos e da paz.

2. João Paulo II vinha de uma experiência diferente: a de uma Igreja perseguida e consequentemente à defesa. Com receio de que a Igreja pós-conciliar estivesse a perder a sua identidade católica, quis recentrá-la em Roma e no Papa. Homem de convicções, corajoso, crente no Deus de Jesus, foi das pessoas mais populares de sempre, contribuindo para isso as 104 viagens em 129 países. O mundo agradeceu-lhe, despedindo-se com milhões de pessoas no funeral e o povo a exigir que queria vê-lo rapidamente canonizado.

Afirmou e reafirmou os direitos humanos, contribuiu para a queda do Muro de Berlim, defendeu os direitos dos trabalhadores, que estão antes do capital, perdoou àquele que quis assassiná-lo, fez o possível para evitar a invasão do Iraque, foi um lutador incansável pelo que considerava a sua missão, percorreu o mundo como mensageiro da paz, reuniu em oração os dirigentes das religiões mundiais, em Assis.

Mas viveu imensas contradições. Paladino da liberdade, cerceou-a dentro da Igreja. Pediu perdão pelas culpas da Igreja ao longo da História ao mesmo tempo que perseguiu mais de 140 teólogos. Defendeu os direitos humanos para o mundo ao mesmo tempo que reprimiu quem dissentia das suas concepções doutrinais e teológicas. Pôs travão a horizontes abertos pelo Vaticano II, que queria que fosse lido através do Vaticano I. Foi incapaz de rever algumas normas de ética sexual, não permitindo o preservativo, apesar da sida. Opôs-se tenazmente a uma reflexão sobre a lei do celibato obrigatório. Travou a teologia da libertação, humilhando publicamente o poeta E. Cardenal. Quis pôr termo definitivo até à possibilidade de debate sobre a ordenação das mulheres.

Se pessoalmente era santo? Não duvido. Mas deixou uma herança dramática por causa da Cúria entregue a si mesma e do modo como terá lidado com a pedofilia do clero e a figura perversa do fundador dos Legionários de Cristo. Por isso, muitos, incluindo o cardeal Carlo Martini, questionaram a oportunidade da canonização. O que é facto é que o sucessor, Bento XVI, acabou por resignar e Francisco está mais na linha de João XXIII do que da de João Paulo II.

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