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«Queres saber o que rezo nas orações?/ troncos secos, gravetos/ cercas e barro vermelho»

O riacho incansável/ através do matagal/ o monge segue-o assobiando

Muitas vezes encontramos na nossa vida coisas, pessoas, situações, acontecimentos que são um riacho que desconhecemos onde termina. Passam por nós e continuam a sua viagem.

Com que sabedoria olharemos para esse riacho? É fazendo o seu caminho assobiando, isto é, sem pressas, sem pretensões, sem querer explicar, mas saborear o momento.

Como um pequeno pastor com um fio de erva nos lábios que vai vivendo o tempo, nós precisamos dessa distensão interior.

A confiança é uma forma de distensão, de calar em nós o medo, a voracidade, as interrogações que nos ensurdecem. Calar, calar, calar dentro de nós a confusão das vozes para reaprender o fio da confiança.

Há quanto tempo nós não caminhamos pela rua assobiando? Ou há quanto tempo não seguimos os riachos com um fio de erva nos lábios, sem mais, sem porquê, acreditando no valor das etapas da vida que não conduzem a lado nenhum?

Há caminhos na floresta que não conduzem a nenhuma parte. Que valor é que têm? Dão-nos a possibilidade de passear, de estar ali naquele momento com o peso do nosso corpo, com a nossa situação. A vida espiritual é precisamente a redescoberta disso, a cada momento.



Ruído estranho sobre o telhado?/ que entre/ quem chegar

A nossa vida é muitas vezes um telhado cheio de ruídos que não conseguimos logo identificar. E a nossa atitude é de medo, de reserva, de defesa. Vivemos blindados, com as nossas armaduras e armadilhas.

«Ruído estranho sobre o telhado?/ que entre/ quem chegar»: é a atitude do acolhimento, da hospitalidade da vida; é a atitude de quem não escolhe aquilo que vai viver.

Há coisas que podemos escolher viver. Mas há também aquilo que não escolhemos e que temos de viver como uma oportunidade para fazer a viagem, temos de viver como uma pequena arte, um pequeno elogio da confiança.



Quem espera o nada/ sabe que a passagem/ se dá

Qual é, verdadeiramente, a arte da confiança? É esperar o nada. Aquilo que em Taizé, por exemplo, nos ensinam a rezar quando por lá passamos: "Senhor, estou aqui à espera de nada".

Quem se coloca à espera do nada, sabe que a passagem se dá, que alguma coisa se dá. Porque os nossos limites, muitas vezes, têm a ver com a imposição e o atropelo em nós do desejo - daquele desejo -, que frequentemente nem é o melhor, mas apenas aquilo que conseguimos ver naquele momento.

Olhemos, por exemplo, para as crianças: acontece ouvirmos numa loja uma criança a chorar porque quer alguma coisa; mas, naquela ocasião, essa vontade não é a melhor para ela. O papel dos pais é abri-la a outros desejos, dar-lhe outra compreensão da vida.

A verdade é que nós somos assim, crianças, pela vida fora, a fazer birras por isto ou por aquilo. «Quem espera o nada/ sabe que a passagem/ se dá.»



Queres saber o que rezo nas orações?/ troncos secos, gravetos/ cercas e barro vermelho

A autobiografia espiritual da Madre Teresa de Calcutá foi um grande choque: toda a gente pensava que a oração dela era quase à maneira de um sermão do Padre António Vieira, polifónica, barroca.

Ao contrário, a sua foi uma oração que é um nada. A oração do vazio, a oração do silêncio, a oração da noite escura, a oração dos troncos secos, dos gravetos, da cerca e do barro - isto é, a oração da vida.

O grande equívoco da oração é compor-se de um conjunto de palavras que nos dão a ilusão de que ela é sempre uma morfologia da beleza, do ideal, da perfeição, do acabamento. E não é o inacabado que rezamos, não é o imperfeito que rezamos, não é a vida quotidiana que rezamos, não é a perplexidade que transportamos que rezamos.

«Queres saber o que rezo nas orações?/ troncos secos, gravetos/ cercas e barro vermelho.»



Adorar/ é surpreender Deus/ na menor migalha

A oração não se faz de festins; a oração faz-se de migalhas. Faz-se do mínimo, e não do máximo. A verdadeira oração faz-se do ínfimo que é a vida, daquilo que não tem espessura nem forma, mas é o que somos e vivemos. E perceber, como dizem os monges budistas, que Deus está num grão de arroz.

Se não formos capazes de ver Deus num grão de arroz, não somos capazes de o ver em parte alguma. Se não somos capazes de ver Deus no ínfimo, não somos capazes de o ver no grande e no imenso.



Iniciada a meditação/ chamam por mim/ e não respondo

É importante vivermos a oração como um tempo de entrega - ao contrário da distração. Diziam os Padres do Deserto: se quando estás a rezar fores mordido por uma abelha, a tua mordedura não fará mal.

No tempo da oração, muitas vezes a imaginação é a louca da casa: vem e arrebata-nos para aqui e para ali, e sentimos a pressão de tudo o que não fizemos e que é preciso fazer precisamente naquele momento.

Como é importante este desligar, num tempo em que todos estamos ligados, e isso confunde-se tantas vezes com a própria existência - e não é assim: também precisamos da nossa solidão, precisamos desse espaço íntimo, de um tempo só nosso em cada dia, precisamos de olhar pela janela, precisamos desses momentos para refazer com outro alento a nossa vida.



José Tolentino Mendonça 
Monjas Dominicanas do Mosteiro de Santa Maria, Lumiar, Lisboa, 9.11.2013 
Publicado em 19.12.2014


http://www.snpcultura.org/meditacoes_advento_3.html

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