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AS ESTRELAS SÃO PESCADORES E ANDAM À PESCA DE GENTE


     Quanto mais avançava a noite mais se aclarava o céu. Bem podia o sol andar a mostrar as coisas a toda a luz quando o Antunes só de noite é que as sabia ver todas juntas, ainda para lá das estrelas! E não era todas as noites. Há noites como esta que marcam a vida de uma pessoa. Nunca a sua cabeça estivera tão a gosto como hoje àquela janela e com todo o espaço para voar. Nenhuma janela de nenhum andar se pode comparar à independência de uma janela de telhado. O Antunes reparou que ao começar a noite as primeiras janelas a acenderem-se eram as dos pátios, e alta a noite as últimas a apagarem-se as das águas-furtadas. Não admira, ficam mais perto das estrelas, e é por isso que subiram para cima dos telhados, para as ouvir melhor. Se não houvesse as águas-furtadas, o mundo estaria todo ainda por fazer e, além disso, em que outro sítio iriam ficar os descontentes? Quantas vezes o sol com a sua mania da pontualidade deixou por acabar a solução da humanidade numa água-furtada? Doce espectáculo da humanidade sem o contacto das gentes. Saudável refúgio que enche o quarto sem nada nas gavetas. Último patamar do mundo para descer ou subir, à escolha, à nossa escolha. A nossa vontade está-se a procurar no inconsciente da madrugada. Ou não é da vontade que se trata, é só do inconsciente, tão necessário nestes dias tão certos. Porque não me hei-de explicar, se tenho em mim todos os dados? Hei-de morrer sem saber dizer-me todo? Hei-de acabar por não me dar a conhecer bem a mim nem aos outros?
     Um rumor dentro de casa fê-lo despertar daquela evasão. O deserto não fica mais longe do mundo do que uma água-furtada. A sua garganta teve de tossir. Era o momento de mudar a posição do corpo no parapeito da janela. Ou as estrelas acessíveis ou a presença daquele quarto ligado à terra.

José de Almada Negreiros, Nome de Guerra

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