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«Às vezes não te compreendo bem.» «Sou uma ilha pequena, Paula.» Sim, uma ilha pequena, sem arquipélago, e à volta o oceano desconhecido e um nevoeiro tão denso que não deixava ver os barcos, se os havia. Mas era natural que os houvesse. Há sempre barcos em volta das ilhas. Estivera um dia numa ilha assim… A voz de Paula ria na sua sala, no seu divã. «Todos o somos, não és original.» «Mas eu sou aquela ilha.» Pequena e com praias de cascalho, não muito belas, e voltadas para oriente. O sol abandonava-as a meio da tarde e então fazia frio e a água ainda há pouco morna e confortável tornava-se gélida, matéria opaca, cheia de vida, de morte e de mistérios. Só havia uma coisa a fazer, subir, subir à procura de um resto de sol. Mas do lado ocidental era o reino das gaivotas e dos rochedos a pique. Coisas só para olhar. Ruídos que eram silêncio. E acabava sempre por regressar à tenda onde estava acampada com uns amigos. Cansada. Farta. A querer ir-se embora e sem partir. «Mas a tua vida é que é uma ilha, não tu.» «Sim, a minha vida», concordou Jô. «Mas o que sou eu sem a minha vida, o que somos nós sem ela?» «Bem, é tarde, vou deitar-me», disse Paula. «E o teu caso, na mesma?» 

Maria Judite de Carvalho

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