Avançar para o conteúdo principal

O tempo, a crise e a transcendência
por ANSELMO BORGES
Enigma maior é o do tempo. Não o tempo meteorológico, mas aquele tempo que nos faz envelhecer e desaparecer, morrer os nossos pais e amigos, aqueles a quem mais queremos, que tudo devora e anula. Naquele seu abismo devorador, tudo se despenha, e torna-se como se não tivesse sido.
Já Santo Agostinho se abismava perante o enigma: o que é o tempo? Eu sei. Mas, se alguém me perguntar e eu quiser responder, já não sei. Porque o passado já não é, o futuro ainda não é, e o presente nunca se capta. Ah, se soubéssemos o que é o tempo, teríamos talvez descoberto o mistério de ser e do ser.
Mas é decisivo perceber que já os gregos apresentaram dois grupos semânticos fundamentais referentes ao conceito do tempo: chrónos, o tempo quantitativo e linear, para significar o fluir inelutável do tempo, sem qualquer possibilidade de intervenção humana, e kairós, incidindo sobre o tempo qualitativo, enquanto crise e enquanto oportunidade, para referir aqueles momentos no tempo em que o homem é convocado a uma intervenção decisiva. Chrónos devora os seus próprios filhos, segundo o mito; kairós é a oportunidade oferecida aos homens para a viragem e a conversão, e tem também a ver com aquela experiência de pontos no tempo tangidos pela eternidade - pense-se na experiência da beleza, do amor, da música, da criação -, quando o tempo na sua voragem fica suspenso e mesmo anulado. A experiência da transcendência!
No termo de mais um ano, de forma mais intensa, é o enigma do tempo que outra vez nos visita, na sua dupla face: o tempo cronológico (devorador) e o tempo kairológico (criador).
Quantos neste ano deixaram de cá estar! Um fim de ano qualquer também já cá não estaremos.
Entre tantos que partiram - partiram para onde? (no domínio da ultimidade, a linguagem atraiçoa-nos sempre)-, fica aí, gigante na luta pela liberdade, no humanismo, na fundura e na altura do pensar político, Vaclav Havel.
É iniludível o seu pensar precisamente sobre o tempo, a crise e a transcendência, como, entre nós, chamou a atenção Jorge Almeida Fernandes.
O que provoca a crise maior do nosso tempo senão a vivência do tempo apenas como imediatidade de sucesso, produção e consumo, esquecendo a dimensão moral, metafísica e trágica da existência? Lá estava Havel a avisar em 2007: "O Ocidente democrático perdeu a capacidade de proteger e cultivar os valores que não cessa de reclamar como seus. O pragmatismo dos políticos que querem ganhar futuras eleições, reconhecendo como autoridade suprema a vontade e os humores de uma caprichosa sociedade de consumo, impede esses mesmos políticos de assumirem a dimensão moral, metafísica e trágica da sua própria linha de acção. Uma nova divindade tende a suplantar o respeito pelo horizonte metafísico da vida humana: o ideal de uma produção e de um consumo incessantemente crescentes."
Tenho aqui repetido que, numa sociedade sem transcendência nem eternidade, o tempo não faz texto, pois tudo se dissolve no aqui e agora, na pura imediatidade. E isso, claro, tem consequências até na economia. Vaclav Havel constatou: "Estamos a viver na primeira civilização global", acrescentando: "Mas também vivemos na primeira civilização ateia, isto é, numa civilização que perdeu a conexão com o infinito e a eternidade." Consequências: uma civilização "obstinada em perseguir objectivos a curto prazo", "o que é importante é que um investimento seja rentável em 10 ou 15 anos" e não os efeitos dentro de 100 anos. Depois, "o orgulho", a hybris dos gregos. Por isso, suspeitava que a "nossa civilização caminha para a catástrofe", a não ser que cure "a sua miopia e a sua estúpida convicção de omnisciência, o seu desmesurado orgulho."
Achava que "o desenvolvimento desenfreado de uma civilização deliberadamente ateia deve alarmar-nos". Considerava-se apenas meio crente, mas com "a certeza de que tudo no mundo não é apenas efeito do acaso" e convencido de que "há um ser, uma força velada por um manto de mistério. E é o mistério que me fascina." Afinal, "a transcendência é a única alternativa à extinção."

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Não é uma sugestão, é um mandamento

Nos Evangelhos Sinóticos, lemos muito sobre as pregações de Jesus a propósito do «maior mandamento». Não é a grande sugestão, o grande conselho, a grande linha diretiva, mas um mandamento. Primeiro, temos de amar a Deus com todo o coração e com toda a nossa força, sobre todas as coisas. Ao trabalhar com os pobres camponeses da América Central, que não sabiam ler nem escrever, a frase que eu sempre ouvia era: «Primero, Dios». Deus tem de ser o primeiro nas nossas vidas, depois, todas as nossas prioridades estão corretamente ordenadas. Não amaremos menos as pessoas, mas mais, por amar a Deus. A segunda parte do «maior mandamento» é amarmos o próximo como a nós mesmos. E Jesus ensina-nos, na parábola do Bom Samaritano, que o nosso próximo é esse estrangeiro, esse homem ferido, essa pessoa esquecida, aquele que sofre e, por isso, tem um direito acrescido sobre o meu amor. Jesus manda-nos amar os estranhos. Se só saudamos os nossos, não fazemos mais do que os pagãos e os não cr
Talvez eu seja O sonho de mim mesma. Criatura-ninguém Espelhismo de outra Tão em sigilo e extrema Tão sem medida Densa e clandestina Que a bem da vida A carne se fez sombra. Talvez eu seja tu mesmo Tua soberba e afronta. E o retrato De muitas inalcançáveis Coisas mortas. Talvez não seja. E ínfima, tangente Aspire indefinida Um infinito de sonhos E de vidas. HILDA HILST Cantares de perda e predileção, 1983

Oh Senhor

Ó Senhor, que difícil é falar quando choramos, quando a alma não tem força, quando não podemos ver a beleza que tu entregas em cada amanhecer. Ó Senhor, dá-me forças para poder encontrar-te e ver-te em cada gesto, em cada coisa desta terra que Tu desenhaste só para mim. Ó Senhor, sim, eu seu preciso da tua mão, do abraço deste amigo que não está. Dá-me luz, à minha alma tão cansada, que num sonho queria acordar. Ó Senhor, hoje quero entregar-te o meu canto com a música que sinto. Eu queria transmitir através destas palavras. Fico mais perto de ti.