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SÁBADO, 24 DE DEZEMBRO DE 2011


altConto de Natal recebido do geólogo e divulgador de ciência Galopim de Carvalho:

Foi em Évora, no Natal de 1938, o ano em que deveria ter entrado na escola, mas a minha mãe não deixou. A Escola de São Mamede tinha fama pelas reguadas que ali se davam às crianças em nome do ensino e da boa educação. O meu irmão Mário, dois anos mais velho do que eu, e as mãos dele, de frieiras rebentadas, eram testemunhos dessa incompreensível mas bem real pedagogia. No entender de mãe, eu era muito pequenino para enfrentar tamanha violência, nesse tempo, perfeitamente aceite pela sociedade, em geral.

- Ficas aqui com a mãezinha. – Afirmava. - Aprendes comigo e, quando fores mais crescido, já podes ir para a escola.

Então, em casa, a sós com a minha mãe e enquanto ela costurava, eu ia soletrando a Cartilha Maternal do João de Deus e recitando a tabuada, primeiro a do dois, depois a do três, ao mesmo tempo que me ocupava dos trabalhos de serventia às suas tarefas de tesoura, agulha e linha. Recolhia os restos da costura. Escolhia e separava os retalhos para futuros consertos que, depois de enrolados e atados com uma tira do próprio tecido eram guardados numa mala própria, já cheia de tantos restos.

- Quem guarda, acha! – Dizia ela sempre.

Os trapinhos mais pequenos eram destinados às «matulas» que, embebidas em azeite de fritar, guardado para esse fim, serviam para pegar fogo ao carvão na fornalha da cozinha, todas as manhãs, quando se acendia o lume. Apanhar os restos e as linhas espalhadas no chão era a tarefa de que eu menos gostava.

– Anda, vai lá buscar a vassoura e a pá! Não ouves?
Eu ia resistindo, entretido com qualquer coisa que me desse mais prazer. Por fim, lá obedecia, lento e desinteressado.

– Não sejas madraço! Despacha-te! Não queiras ser um «calaceiro» como o teu tio. – Ralhava, referindo-se a um cunhado que, em sua opinião, gostava mais de falar do que de trabalhar.

Este meu apoio aos trabalhos domésticos da mãe incluía, ainda, os recados e, nessas andanças de «compra lá um tubo de sedalina desta cor» ou «um torçal que diga com o tom desta seda», exercitei um certo sentido de memória das cores e dos tons. A mãe mostrava-me o tecido – uma seda, um cetim, um pano ou uma fazenda de lã – e eu trazia a linha pretendida, que escolhia, de memória, entre as caixas ou nos mostruários da retrosaria.

– Anda cá para ires fazer um «mandado» à mãezinha! – Chamava-me ela com um certo ar de meiguice interesseira, logo denunciado.

– Vai à do senhor Conde e traz um carrinho de linhas «Carta», número quarenta, branco, e meio metro deste «sarjelim». Leva esta amostrinha. Não te demores! Não percas o dinheiro! – Gritava, já eu corria a caminho da rua.

Disso gostava eu. Era a maneira de ir ver as montras de brinquedos na loja do Nazareth e sonhar. Era, ainda, a possibilidade de dar duas pedaladas num triciclo que estava à venda na loja do senhor Teigão e que acabou por ser a causa de um dos acontecimentos mais marcantes da minha infância.

Eu adorava aquele triciclo. Ficavam-me os olhos nele. Assim, comecei a juntar todos os tostões que conseguia apanhar. Custava sessenta escudos (30 cêntimos, no dinheiro de hoje). Aprendi aí a lutar pelo que queria. Fiz «mandados», ganhei gorjetas e tive ajudas. Consciente do que se estava a passar, o meu pai, certamente com grande sacrifício, e antes que alguém o comprasse, falou em segredo com o senhor Teigão e mandou que lho reservasse, pois que o queria para mim. Nesse dia o triciclo desapareceu da loja. Que contrariedade! Que tristeza tão grande!

- Quem o comprou, senhor Teigão? – Perguntei, desolado.

- Foi um cliente que aí veio esta manhã! Nem sei quem é. Penso que não é de cá.

- E já não tem mais nenhum? – Insistia.

- Talvez para o Natal venham mais, mas não é certo.

– Puta de vida! – Dizia para mim, imitando o que tantas vezes ouvia dizer aos crescidos.

Mas a vida também nos reserva, por vezes, coisas boas. No dia de Natal este mesmo triciclo estava lá em casa, na cozinha, junto à chaminé e era para mim. O «meu» triciclo estava ao pé da minha bota, naquela manhã em que eu e os meus irmãos saíamos da cama para ver o que o Menino Jesus lá tinha deixado, num ritual algo teatral, pois todos sabíamos quem era o Menino Jesus lá de casa. Ao almoço desse dia, já eu tinha dado mil voltas na minha «máquina», o pai, que estava a par dos meus esforços para conseguir amealhar o dinheiro necessário à compra daquele triciclo, e porque ele desejava contribuir apenas com o que faltasse, não só por razões de educação como porque ele próprio, empregado de escritório e único suporte de uma família com cinco filhos, tinha as suas dificuldades, perguntou-me:

- Quanto é que juntaste?

– Não deve chegar a trinta escudos – Respondi, depois de um breve franzir de olhos, enquanto fazia umas contas de cabeça sumárias.

– Não juntei mais porque o triciclo desapareceu lá da loja e perdi a esperança de o ter.

– Vamos lá ver quanto é que tens. – Disse, mandando-me buscar o meu «migalheiro». –

O paizinho põe o resto.

Não cabendo em mim de contente, fui buscar aquele meu potezinho de barro vermelho onde ia metendo, tostão a tostão, os proventos do meu trabalho e a generosidade dos meus amigos. Não foi preciso parti-lo. O meu irmão mais velho era perito em meter-lhe, fenda adentro, a lâmina fina de uma faca e fazer deslizar por ela as moedinhas, umas atrás das outras. Sempre que este meu irmão, sete anos mais velho que eu, precisava de dinheiro, ia pedir-mo, sempre às escondidas da mãe, e era aquela a técnica usada, Era dinheiro para jogar ao «cento-e-quatro» ou ao «tacho», nos bilhares do Café Montanha e, como ganhava sempre, pois tornara-se um campeão na via hereditária do nosso pai, pagava-me com bons juros.

O dinheiro saído do meu «migalheiro» totalizou pouco mais de vinte e sete escudos. Era tudo em moedas de tostão, de dois tostões e de meio tostão; as de cinco tostões eram raras e não havia nenhuma de dez.

- Ainda falta mais de metade. – Confirmei.

– Não te preocupes – Deu-me o pai por única resposta, com uma imensa alegria estampada no rosto.

A. Galopim de Carvalho


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