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O naufrágio desta semana, na costa italiana, deixou-nos uma lição de vida: houve quem sucumbisse ao mais básico instinto de sobrevivência – a começar pela insólita fuga do comandante; e houve quem permanecesse a bordo, tratando de salvar os últimos e os mais frágeis. Exemplo disso são: o comissário de bordo que, depois de ajudar tantos passageiros, partiu a perna e ficou encurralado a noite inteira, no escuro; tantos homens que ofereceram o seu lugar nos salva-vidas a mulheres e crianças; um jovem baterista que deu o seu colete salva-vidas a um miúdo e depois nunca mais foi visto. São muitas as histórias de gente normal, como nós, que, no meio da tragédia, teve um gesto heróico - alguns dando a vida por isso. E são exactamente histórias como estas que salvam a humanidade.

Mas é também uma bela lição porque é uma metáfora perfeita da nossa sociedade. Põe a nu como - onde quer que nos encontremos - há aqueles que só pensam em salvar a pele; mas também há aqueles que querem salvar a alma. E esses sabem que a alma só se salva quando estamos uns com os outros. Ou, posto de outra forma: na verdade, salvar a pele é algo que está inscrito nos nossos genes. Todos somos habitados por essa tensão. Mas enquanto uns continuam a ser crianças, outros ganham maturidade.

A culminar a situação de crise e a lição, Gregorio di Falco - o comandante da capitania dos Portos de Livorno - ainda tem humildade e clarividência para declarar, peremptório: "Esqueçam-me. Parem de falar sobre mim. O herói não sou eu. O herói é o meu imediato, Alessandro Tossi, que de olhos postos no radar, percebeu o que ia acontecer naquela noite […]. Você sabe quem resgatou todos aqueles passageiros depois do comandante ter abandonado o navio? Um rapaz maravilhoso do nosso helicóptero. Marco Savastano. É este nome que devem escrever. Até deviam era encher uma página com os nomes dos membros da Guarda Costeira, da Polícia Marítima, dos bombeiros, da proteção civil que naquela noite se esqueceram de si para ajudar os outros".

Vale a pena guardar na memória o telefonema que correu o mundo, entre Francesco Schettino e Gregorio di Falco: podemo-nos indignar, podemo-nos preocupar, podemo-nos rir; mas não podemos esquecer que trazemos a imbecilidade dentro de nós.

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