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Beira, 25 de Abril de 2012

Fui deixar a Maria ao machimbombo às 3h da manhã - machimbombo é o nome dado aos autocarros aqui em Moçambique. Viajar num, pode ser uma risota: compra-se de tudo a vendedores que surgem de lado nenhum, ouve-se o inimaginável, cheiram-se novidades, assiste-se ao impensável! Por outro lado, é também um risco. Nunca se sabe o que vai acontecer: as avarias sucedem-se; os pneus furam sem terem suplentes; os destinos são alterados a meio do caminho; o cobrador pode mandar sentar uma pessoa ao colo doutro passageiro durante horas de viagem (a Maria já deu colo a um homem de fato e gravata durante 6 horas); passageiros podem ser expulsos, deixados no meio do nada – porque a polícia está adiante e o machimbombo não tem licença para transportar tanta gente; e por aí adiante...

Poucas horas depois de partir num machimbombo amarelo cortado por riscas vermelhas, com a palavra «Jesus» escrita nos costados, a Maria escreveu-me um sms: “ta tudo óptimo, dormi até agora, acordei porque o gajo atrás de mim entornou fanta pa cima de mim”. Eu sabia que a Maria estava num machimbombo decrépito, também sabia que aquela estrada não tem estações de serviço – nem nada que se assemelhe – nos seus lentos quilómetros de calor e pó. Comecei, então, a imaginar o que seria viajar ali molhado de Fanta: sentir o açúcar peganhento que derrete na pele com o calor, sentir a cadeira, furada e torta, colar-se a mim, e, pior que tudo, saber que nada disso vai desaparecer nas longas horas que faltam até ao destino. Identifiquei-me com a situação da Maria. Quando me acontece algo que não controlo, quando me sinto inseguro, sem qualquer poder sobre os acontecimentos, partilhar a impotência torna as situações desconfortáveis, em situações um pouco menos duras. Eu já mandei vários «desses» sms! Lembro-me dum de queixume – depois duma missa campal de seis horas alternando sol tórrido com chuva abundante; doutro de desespero – quando fiquei com o carro atolado dentro duma reserva de leões; doutro ainda de surpresa – na primeira vez que assisti a cerimónias tradicionais de evocação de antepassados. Todos esses sms eram pura necessidade de dividir essa fragilidade, e, assim, retomar o ânimo.

Certa vez, dei por mim perdido em terra de nenhures. Vinha de viagem, andara uns 300 quilómetros numa carrinha de «caixa-aberta», e estava a tentar apanhar um machimbombo que me faria regressar à Beira. A barriga apertava – há 16 horas que não trincava nada – e, na viagem seguinte, talvez houvesse alguém a vender comida, mas talvez não houvesse. O meu dinheiro era de menos, e os olhares sobre minha mochila eram demais. Nunca tinha estado naquela terra, não falava a língua local – e rareava quem falasse português. Quando encontrei o desejado machimbombo, mesmo à porta dele, vi uma cena de pancadaria. Senti-me frágil, inseguro; estava esfomeado, perdido, e totalmente impotente em relação a qualquer imprevisto que surgisse. Foi então que decidi beber uma coca-cola. A decisão parecia racional: alimento, hidratação e baixo preço; mas a minha motivação era outra. O seu sabor familiar, o gás previsível, o açúcar conhecido, a garrafa de vidro que a palma da mão advinha, foram, para mim, segurança e santuário! (Na idade média as pessoas podiam entrar em Igrejas, ou Mosteiros e pedir santuário: protecção total de tudo e de todos, mesmo do Rei). Ora, também eu – mesmo que só por segundos – recebi santuário da coca-cola, ou melhor, recebisantuário por fazer algo controlado. Quando parecia que tudo me escapava, um gesto simples, beber uma bebida minha conhecida, foi o suficiente para me recompor. E segui viagem.

Lidar com o desconhecido e o novo traz insegurança e dúvida. Embora seja mais fácil descrever essa fragilidade numa viagem perdida em África, isso também acontece nas relações pessoais. Quando falo com alguém doutra cultura, quando troco ideias com alguém que não encara o mundo da mesma forma que eu, fico perdido; não é fácil comunicar. Preciso de referências, preciso de partir do que sei e do que conheço para começar a entender o que não percebo. A minha tradição, o meu mundo, é sempre a plataforma que me permite acolher o novo. Não sou um receptáculo vazio, tenho uma biografia, uma história, uma família, referenciais próprios. E são os meus referenciais que me permitem (tentar) ser bilingue. Não há intérpretes universais: pessoas que falem todas as línguas, e que percebam todas as racionalidades; mas, percebendo como eu próprio penso, posso tentar enquadrar o raciocínio do outro, posso tentar conhecê-lo.

Parece-me que pôr um pé num sítio firme é condição para poder experimentar a novidade. Beber uma coca-cola dá tranquilidade, escrever uma mensagem a quem pensa como eu ajuda a compreender o que está fora de mim. Estes gestos insignificantes ganham uma carga que os excede porque são tentativas de regressar ao conhecido, de ter os pés seguros, firmes. Paradoxalmente, se não tenho um pé firme, não chego à novidade. Só o saber quem sou e de onde venho, me leva ao outro.

Manuel Cardoso, sj 
15.05.2012

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